Renata Oliveira, Marcos Costa e Gustavo Inacarato Marques

Como “celeiro do mundo”, o Brasil tem no agronegócio um segmento de relevância inquestionável para a economia. O setor demonstra sua força produtiva no resultado do PIB do primeiro trimestre de 2020, como o único a apresentar crescimento no período, ainda que tímido. Com a crise econômica mundial que se anuncia em virtude da pandemia de covid-19, no entanto, é razoável imaginar que esse grande pivô da economia nacional possa passar por dificuldades, motivo pelo qual é importante que se pacifique no Judiciário e no Legislativo a forma de abordar essa conjuntura, sempre tendo em mente a necessária segurança jurídica.

Nesse sentido, é importante discutir as questões que circundam a matéria, inclusive à luz do Projeto de Lei nº 1.397/20, editado para alterar momentaneamente alguns dos requisitos dos processos previstos na Lei de Falências e Recuperações (Lei nº 11.101/05 – LFR), com o objetivo de facilitar seu uso e criar alguns novos meios para amenizar a queda abrupta de faturamento das empresas como um todo, a saber, a suspensão legal e a negociação preventiva.

A LFR visa a socorrer apenas o empresário e a sociedade empresária, conceitos que não englobam, a priori, o produtor rural sem registro prévio na junta comercial. Os legitimados a requerer recuperação judicial devem comprovar o exercício regular de atividades há mais de dois anos, matéria bastante controversa no que se refere ao produtor rural e cuja jurisprudência diverge entre os tribunais estaduais.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem entendimento consolidado no sentido de que o registro do produtor rural apresenta natureza declaratória. Em decorrência disso, o período de atividade anterior ao registro deve ser levado em conta para o preenchimento do requisito de, no mínimo, dois anos de atividade previsto no caput do artigo 48 da LFR, considerando que mesmo os créditos contraídos antes do registro são sujeitos à recuperação judicial.[1]

Em sentido diametralmente oposto, a jurisprudência dos tribunais dos estados de Mato Grosso e Goiás entende que o registro tem natureza constitutiva. Assim, os créditos anteriores ao registro não são abarcados em eventual recuperação judicial.[2]

A divergência ainda não foi solucionada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Embora ao julgar o tema em recurso oriundo da recuperação judicial do Grupo J.Pupin, o STJ tenha exarado o informativo de jurisprudência nº 0664, de 28 de fevereiro de 2020, para, corroborando o enunciado nº 202 da III Jornada de Direito Civil,[3] externar o entendimento de que: (i) o registro tem natureza declaratória; (ii) o cômputo do período de dois anos do artigo 48 da LFR inclui aqueles anteriores ao registro; e (iii) os créditos contraídos em momento anterior ao registro devem ser abarcados pela recuperação judicial, uma vez que o exercício da atividade já ocorria em momento pretérito.

O informativo em questão não tem efeito vinculante e, desde então, não existiram novos julgados no mesmo sentido, o que manteve o cenário de incerteza.

No último dia 9 de junho, a Quarta Turma do STJ levou a julgamento três novos recursos que versavam sobre a possibilidade ou não de o produtor rural se valer da recuperação judicial, sem estar inscrito há mais de dois anos na junta comercial.[4]

Nessa ocasião, não houve discussão sobre o mérito da controvérsia; apenas foi definida a prevenção do ministro Luiz Felipe Salomão para o exame dos recursos. Contudo, em debates durante a sessão, os ministros da Quarta Turma ponderaram a necessidade de afetação do tema ao rito dos recursos repetitivos, a fim de prevenir julgamentos divergentes entre a Terceira e a Quarta Turma. O ministro Luiz Felipe Salomão, ao reconhecer sua prevenção, destacou que avaliará essa possibilidade, mas que a ausência de jurisprudência do STJ sobre o assunto talvez seja um impedimento para tanto.

A nosso ver, são bons os argumentos para a defesa da posição de que o registro tem natureza constitutiva. Essa interpretação é reforçada pelo princípio da boa-fé, pois tal fato é levado em consideração na análise do risco do empréstimo ao produtor rural e não pode haver alteração da sujeição ou não do crédito à recuperação judicial por ato unilateral e posterior do próprio produtor rural.

Outro ponto a ser discutido diz respeito ao PL 1.397/20, que, ao criar a suspensão legal e o mecanismo de negociação preventiva, estendeu expressamente a possibilidade de uso de tais instrumentos aos produtores rurais e aos profissionais autônomos que exerçam regularmente suas atividades[5] – o que não foi feito em relação aos processos de recuperação judicial, recuperação extrajudicial e falência previstos na LFR.

Porém, ao abrandar os requisitos do art. 48 da LFR durante o período da pandemia,[6] o PL aparentemente afasta a regra dos dois anos de atividades prévias e regulares antes do pedido de recuperação judicial. Indiretamente, isso acaba por permitir que produtores rurais tentem se valer desse procedimento judicial e leva à retomada da discussão judicial sem desfecho que paira no Judiciário. De maneira não tão clara, o PL acaba desestabilizando a recente tentativa do STJ de criar maior segurança jurídica a respeito do tema, algo essencial ao desenvolvimento de um ambiente econômico saudável.

Tal questão, que aparentemente não foi levada em conta pelo legislador ao propor uma mudança desse calibre à LFR, pode acarretar graves desdobramentos também aos produtores rurais, que estariam enquadrados no conceito de agente econômico e dispensados dos requisitos do art. 48 da LFR.

Em meio a um cenário de grande aversão ao risco na economia, criar ainda mais instabilidade é algo que deve ser evitado, pois pode inviabilizar toda uma cadeia produtiva, agravando o já conturbado cenário econômico. É imperioso dizer que a situação atual já tem levado a uma série de dificuldades de acesso a crédito.

Especificamente no caso dos produtores rurais, a escalada do dólar a um patamar recorde eleva o custo de recursos importados e, em última instância, o custo da produção. A procura por créditos a uma condição acessível tende a crescer. Ocorre que a viabilidade da tomada de créditos depende, de forma intrínseca, da segurança jurídica. Por esse motivo, entendemos que o PL deve ser repensado, ao menos no que tange aos pontos tratados neste artigo.

 


[1] TJSP, Agravo de Instrumento nº 2225271-32.2019.8.26.0000; rel. des. Sérgio Shimura, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 04/05/2020; TJSP, Agravo de Instrumento nº 2149200-86.2019.8.26.0000; rel. des. Sérgio Shimura, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 04/04/2014.

[2] TJMT, N.U 1001934-32.2019.8.11.0000, Câmaras Isoladas Cíveis de Direito Privado, rel. des. Rubens de Oliveira Santos Filho, j. 04/12/2019; TJMT, N.U 1004785-44.2019.8.11.0000, Câmaras Isoladas Cíveis de Direito Privado, rel. des. Sebastião Barbosa Farias, Primeira Câmara de Direito Privado, j. 10/09/2019; TJGO, Agravo de Instrumento nº 5100130-57.2018.8.09.0000, rel. des. Alan Sebastião de Sena Conceição, 5ª Câmara Cível, j. 18/02/2019, DJe 18/02/2019.

[3] “O registro do empresário ou sociedade rural na junta comercial é facultativo e de natureza constitutiva, sujeitando-o ao regime jurídico empresarial. É inaplicável esse regime ao empresário ou sociedade rural que não exercer tal opção”.

[4] Recursos especiais nos 1834452/MT, 1834932/MT e 1834936/MT.

[5] Ressalta-se que a Emenda nº 8, apresentada no Senado pelo Senador Roberto Rocha, restringe a aplicação da moratória legal e da suspensão preventiva para microempresas, empresas de pequeno porte e microempreendedores individuais, o que pode impedir produtores rurais que não se enquadrem como ME, EPP e MEI de se valer desses institutos.

[6] Embora o artigo 13, inciso I, do PL não seja muito claro e traga uma redação confusa, ele dispensa a comprovação dos requisitos previstos “nos incisos II e III do caput do art. 48” da LFR durante a vigência do PL. Os incisos II e III dizem respeito à comprovação, pela parte, de ela não ter, há menos de cinco anos, obtido concessão de recuperação judicial. Já o caput do artigo 48 exige a comprovação do exercício regular das atividades há mais de dois anos. Portanto, ao mencionar o caput do artigo 48, o PL dá a entender que tal requisito também ficaria dispensado durante esse período de crise em que vigerá a lei.