Por Fernando Colucci e Alexia Costa Polloni

A problemática da desigualdade de gênero na tributação vem ganhando maior visibilidade no universo jurídico. São várias as formas de tributação que oneram principalmente as mulheres.

No início de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.422, ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), que questionou a constitucionalidade da tributação da pensão alimentícia. Essa modalidade de tributação está intimamente ligada à questão da desigualdade de gênero e traz consequências que não só agravam esse cenário, como comprometem a devida prestação dos alimentos.

Em decisão tomada em plenário, o STF julgou a ação procedente e declarou inconstitucional a tributação das pensões alimentícias decorrentes do direito de família, excluindo do escopo de apreciação os alimentos devidos por outras razões – como aqueles decorrentes de ilícito civil.

Foi dada interpretação conforme a Constituição Federal aos artigos 3º, §1º, da Lei 7.713/88;[1] aos artigos 4°[2] e 46[3] do Anexo do Decreto 9.580/18; e ao artigo 3º, caput e §1º[4] e §4º[5] do Decreto-Lei 1.301/73.

Para entender os impactos dessa forma de tributação e as consequências da decisão do STF, é necessário destacar algumas características essenciais dos alimentos decorrentes do direito de família – seu objetivo, seus sujeitos e seu modo de fixação – antes de tratar da legislação tributária impugnada pela ação direta de inconstitucionalidade.

Características da obrigação alimentar

No direito de família, a prestação de alimentos tem como objetivo principal garantir a vida com dignidade, cidadania e liberdade àqueles que não têm os meios para prover o próprio sustento.[6] A prestação alimentar deve possibilitar o acesso a direitos universais, como educação, alimentação, vestuário, lazer, saúde e moradia, preservando o padrão de vida de quem a recebe.[7]

Em termos técnicos, em relação aos sujeitos envolvidos, existem dois polos na relação de alimentos, compostos por credor e devedor. Os credores, aqueles que recebem os alimentos, são chamados de alimentados. Já os devedores, responsáveis pelo pagamento da prestação, são chamados de alimentantes.

Segundo os dados mais recentes divulgados pela Receita Federal, aproximadamente 97,5% das pensões declaradas no ano-calendário de 2020 para fins de Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) foram pagas por homens.[8]

O último levantamento estatístico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019 revelou que a guarda dos filhos menores de idade foi concedida unilateralmente às mulheres em 61,8% dos divórcios. Aos maridos, em apenas 4,1% dos casos.[9]

Esses dados indicam que os homens ocupam majoritariamente a posição de alimentante, enquanto a posição de alimentado é ocupada por mulheres. Apesar da diversidade de relações familiares que podem ser contempladas na obrigação de prestar alimentos, a realidade dos sujeitos envolvidos é muito mais restrita. Os arranjos se limitam a: homens como alimentantes e mulheres como alimentadas ou guardiãs legais dos filhos alimentados.

A quantificação dos alimentos deve, em teoria, obedecer ao trinômio necessidade/possibilidade/proporcionalidade, considerando a necessidade do alimentado e a possibilidade do alimentante, conforme o artigo 1.694, §1º do Código Civil.[10]

A necessidade surge quando o alimentado não tem meios suficientes para prover seu próprio sustento. Já a possibilidade existe quando o alimentante pode proporcionar o sustento do alimentado, sem que isso prejudique a sua própria sustento. A proporcionalidade determina o equilíbrio entre esses dois fatores.

Há um importante aspecto na fixação dos alimentos diretamente relacionado à desigualdade de gênero. Ainda que a mulher tenha direito ao recebimento da pensão, o valor arbitrado não costuma amortecer a queda no seu padrão de vida após o divórcio.[11] É comum que a necessidade da mulher seja valorada com excessiva cautela: o valor fixado costuma não ser suficiente para garantir a vida com a dignidade prometida pela prestação.

Segundo o IBGE, as mulheres dedicam ao cuidado do lar e daqueles que nele habitam o dobro de horas em relação aos homens.[12] Esse trabalho doméstico e afetivo desempenhado pelas mulheres é desvalorizado[13] e desconsiderado quando da fixação dos alimentos.

É sobre esse cenário que se apoia a tributação.

A tributação da pensão alimentícia

A Lei 7.713/88 determina a incidência do IRPF sobre o valor dos alimentos percebidos em dinheiro. Por um lado, conforme o artigo 3º, §1º dessa lei, os valores recebidos a título de pensão alimentícia devem integrar a base de cálculo do IRPF. Por outro lado, conforme o artigo 12-A, §3º, I[14] da mesma lei, os valores pagos a título de pensão alimentícia poderão ser deduzidos da base de cálculo do imposto, quando a pensão for fruto do cumprimento de decisão judicial, de acordo homologado judicialmente ou de separação ou divórcio consensual realizado por escritura pública.

Percebe-se que, antes da decisão do STF, a tributação das pensões devidas em função do direito de família recaía sobre os alimentados. Os alimentantes, por sua vez, podiam usufruir de um benefício fiscal, deduzindo da base de cálculo do IRPF os valores pagos a título de pensão alimentícia.

Tendo em vista que as mulheres – mais especificamente mães que detêm a guarda dos filhos após o divórcio – ocupam, na esmagadora maioria, a posição direta ou indireta de alimentado, fica claro que elas são mais oneradas na tributação.

Essas mulheres podiam realizar o pagamento do imposto de duas formas, conforme o artigo 4º, parágrafo único, do Decreto 9.580/18:

  • Na posição de alimentadas, declarando e pagando o IRPF sobre os valores da pensão que recebem em nome próprio; ou
  • Na posição de guardiãs dos filhos alimentados, colocando os filhos como dependentes na sua declaração e pagando o IRPF sobre os valores recebidos por eles como pensão.

Cabia à mulher, portanto, o ônus de arcar financeiramente com o pagamento do imposto, utilizando parte do valor da pensão – ou da própria renda – que deveria ser destinado ao pagamento das suas despesas e das despesas dos filhos.

Os impactos negativos da tributação extinguidos pelo STF

Não é preciso muito para identificar a desigualdade de gênero perpetuada por essa forma de tributação: a carga tributária concentrava-se no alimentado e, sendo essa posição ocupada majoritariamente por mulheres, recaía sobre elas todo o ônus financeiro de pagamento do tributo.

No entanto, esse não é o único impacto negativo da tributação que foi extinto pela decisão de inconstitucionalidade do STF.

A tributação dos valores recebidos a título de alimentos, por não ser considerada no momento da fixação da pensão, reduzia ainda mais esses valores que, usualmente, já são insuficientes para cobrir a vivência da mulher e dos filhos após o divórcio. Por meio dessa modalidade de tributação, onerava-se a parte comprovadamente necessitada, submetendo-a ao pagamento do tributo, enquanto a parte contrária gozava de um benefício de dedução.

A proporcionalidade, portanto, ficava desbalanceada, sacrificando a necessidade da mulher em prol da possibilidade do homem. Por consequência, colocava-se um dos polos da prestação em clara desvantagem em relação ao outro.

A decisão do STF suprimiu um outro impacto: o descumprimento do objetivo principal da pensão alimentícia. O comprometimento de parte da prestação para pagamento do IRPF e o não reconhecimento dos custos enfrentados pelas mulheres com o trabalho doméstico reduziam drasticamente o valor da pensão que efetivamente poderia ser aproveitado para garantir a educação, alimentação, vestuário, lazer, saúde e moradia do alimentado.

Ainda que indiretamente, a desproporcionalidade na fixação da pensão alimentícia e a falha no cumprimento do seu principal objetivo acabavam por aumentar a desigualdade de gênero. Agravava-se ainda mais a necessidade das mulheres que postulavam os alimentos, intensificando a sua posição de desvantagem em relação aos homens.

A decisão do STF, portanto, retirou do nosso ordenamento jurídico uma modalidade de tributação que não só aprofundava a desigualdade de gênero, como colocava em risco a essência do instituto sobre a qual se apoiava.

A interpretação dada pelo STF à Lei 7.713/88 e aos seus decretos correspondentes, na análise da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.422, ajudou a diminuir o impacto da desigualdade de gênero na tributação e na própria pensão alimentícia. Com o julgamento, grande parte da proporcionalidade na prestação de alimentos foi restabelecida e abriu-se caminho para a satisfação do objetivo principal da pensão.

Embora ainda existam várias outras problemáticas jurídicas relacionadas à desigualdade de gênero que precisam ser enfrentadas, a decisão do STF é um marco extremamente importante para essa mudança necessária no nosso ordenamento jurídico.

 


[1] Lei 7.713/88, art. 3º: “O imposto incidirá sobre o rendimento bruto, sem qualquer dedução, ressalvado o disposto nos arts. 9º a 14 desta Lei. §1º Constituem rendimento bruto todo o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, os alimentos e pensões percebidos em dinheiro, e ainda os proventos de qualquer natureza, assim também entendidos os acréscimos patrimoniais não correspondentes aos rendimentos declarados”.

[2] Anexo do Decreto 9.580/18, art. 4º: “Na hipótese de rendimentos percebidos em dinheiro a título de alimentos ou pensões em cumprimento de acordo homologado judicialmente ou de decisão judicial, inclusive alimentos provisionais ou provisórios, verificada a incapacidade civil do alimentado, a tributação será feita em seu nome pelo tutor, pelo curador ou pelo responsável por sua guarda (Decreto-Lei 1.301/73, art. 3º, § 1º, e art. 4º).

Parágrafo único. Opcionalmente, o responsável pela manutenção do alimentado poderá considerá-lo seu dependente e incluir os rendimentos deste em sua declaração, ainda que em valores inferiores ao limite da primeira faixa da tabela progressiva anual (Lei 9.250/95, art. 35, caput, incisos III ao V e VII )”.

[3] Anexo do Decreto 9.580/18, art. 46: “São tributáveis os valores percebidos, em dinheiro, a título de alimentos ou de pensões, em cumprimento de decisão judicial, de acordo homologado judicialmente ou de escritura pública registrada em cartório, inclusive a prestação de alimentos provisionais (Lei 5.172/66 – Código Tributário Nacional, art. 43, § 1º; Decreto-Lei 1.301/73, art. 3º e art. 4º; e Lei 7.713/88, art. 3º, § 4º)”.

[4] Decreto-Lei 1.301/73, art. 3º, caput e § 1º: “Os alimentos ou pensões percebidos em dinheiro constituem rendimento tributável, classificável na Cédula “C” da declaração de rendimentos do alimentado, que será tributado distintamente do alimentante. § 1º No caso de incapacidade civil do alimentado, será ele tributado na forma deste artigo, devendo a declaração de rendimentos ser feita em seu nome pelo tutor, curador ou responsável por sua guarda”.

[5] Decreto-Lei 1.301/73, art. 4º, §4º: “O disposto nos artigos 2º e 3º também se aplica aos casos de prestação de alimentos provisionais ou provisórios”.

[6] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda., 2016. E-Book. p. 910.

[7] TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito de família. 14. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Ltda., 2019. E-Book. p. 788.

[8] Receita Federal – Grandes Números IRPF: ano-calendário 2020, exercício 2021

[9] IBGE – Estatísticas do Registro Civil – 2019. Tabela 5.8. Sistema de Estatísticas Vitais

[10] Código Civil, Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação. § 1º Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.

[11] OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti de. Olhares Feministas sobre o Direito das Famílias Contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 128.

[12] IBGE – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: outras formas de trabalho 2019

[13] OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti de. Olhares Feministas sobre o Direito das Famílias Contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 126.

[14] Lei 7.713/88, art. 12-A. §3º: “A base de cálculo será determinada mediante a dedução das seguintes despesas relativas ao montante dos rendimentos tributáveis: I – importâncias pagas em dinheiro a título de pensão alimentícia em face das normas do Direito de Família, quando em cumprimento de decisão judicial, de acordo homologado judicialmente ou de separação ou divórcio consensual realizado por escritura pública; e (...)”