Não são raros os abusos por parte do Estado e, especialmente, das autoridades fiscais para impor tributos sem o devido respaldo jurídico. Esse fato rotineiro, além da excessiva onerosidade da carga tributária, da enormidade de deveres instrumentais e dos valores altíssimos de juros de mora e multas, cria um ambiente muito difícil para o desenvolvimento econômico do país.
Especificamente no caso do ISS, além das intensas discussões sobre o local da prestação de serviços, os conflitos de competência entre os sujeitos políticos tributantes e a constitucionalidade de diversos itens e subitens trazidos pela Lista de Serviços da Lei Complementar nº 116/2003, as polêmicas se agravaram com a edição da Lei Complementar nº 157/2016 e o julgamento do Recurso Extraordinário nº 651.703/PR, em sede de repercussão geral, da relatoria do Ministro Luiz Fux.
No citado julgamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) inovou, rompendo com conceitos até então sedimentados na jurisprudência e doutrina, sobre o que deve ser entendido como “serviços”.
Distanciando-se do conceito tradicional civilista de serviços como “obrigação de fazer”, o STF entendeu que o conceito de serviços estaria relacionado “ao oferecimento de uma utilidade para outrem, a partir de um conjunto de atividades materiais ou imateriais, prestadas com habitualidade e intuito de lucro”. Essa concepção criada pelo STF amplia de forma imprevisível a regra matriz de incidência do ISS, na medida em que introduz conceitos semânticos não juridicizados e extremamente amplos.
Em relação à Lei Complementar nº 157/2016, o artigo 3º da Lei Complementar nº 116/2003 dispõe que, regra geral, considera-se o serviço prestado e o ISS devido no local do estabelecimento prestador. Contudo, a Lei Complementar nº 157/2016 incluiu novos incisos no artigo 3º, criando mais exceções à regra geral, além das diversas existentes.
Duas das mais relevantes alterações atingem especificamente o setor financeiro e deslocam o recolhimento do ISS para o município onde está situado o tomador em relação aos serviços de arrendamento mercantil e aqueles prestados pelas administradoras de cartões de crédito e débito e de fundos e carteiras de clientes.
Com razão, o presidente da República vetou as alterações mencionadas com base em dois importantes argumentos: em relação aos serviços de arrendamento mercantil, o deslocamento do recolhimento do ISS contraria “a lógica de tributação desses serviços, que deve se dar no local onde ocorrem a análise do cadastro, o deferimento e o controle do financiamento concedido” e, em relação aos serviços prestados pelas administradoras de cartões de crédito e débito e de fundos e carteiras de clientes, o deslocamento geraria “uma potencial perda de eficiência e de arrecadação tributária, além de redundar em aumento de custos para as empresas do setor”.
Não obstante, seguindo a pressão de diversas autoridades municipais, o Congresso Nacional derrubou o veto presidencial. Considerando que a última publicação da Lei Complementar nº 157/2016 ocorreu em 1º de junho de 2017, bem como em respeito ao princípio da anterioridade tributária, as alterações passaram a valer, em tese, em 1º de janeiro de 2018.
Além da difícil e custosa aplicabilidade prática, que fere o princípio da razoabilidade, já que as empresas de leasing e as administradoras de fundos e carteiras de clientes deverão se cadastrar em todos os municípios nos quais tiverem clientes domiciliados (o Brasil tem mais de 5.500 municípios), as novas regras ainda trazem uma redação lacunosa e que dá margem a diversas dúvidas. Elas também desvirtuam a hipótese de incidência tributária constitucionalmente prevista.
Nesse ponto, é possível sustentar que as alterações introduzidas pela Lei Complementar nº 157/2016 são inconstitucionais, uma vez que não cabe à lei deslocar o recolhimento de tributo ao seu bel-prazer visando às finalidades arrecadatórias de municípios menos favorecidos às custas de deveres instrumentais onerosos aos contribuintes. Da mesma forma, não cabe às autoridades fiscais decidir a melhor interpretação da regra de competência tributária em caso de dúvidas.
Tanto isso é verdade que, tomando como referência os serviços de administração de fundos e carteiras de clientes, a lacuna legal dá margem a diversas interpretações dúbias, como, por exemplo, se o tomador do serviço de administração de fundos seria o próprio fundo ou o cotista do fundo. A clara delimitação do tomador dos serviços terá um impacto altamente relevante para o contribuinte, que deverá recolher o ISS nesse ou naquele município.
Além disso, as exceções à regra geral de recolhimento do ISS, originalmente previstas na Lei Complementar nº 116/2003, são relativas a serviços que têm resultados concretos em outros municípios. Portanto, as alterações introduzidas pela Lei Complementar nº 157/2016 acirram ainda mais outra discussão que há muito tempo ocupa espaço nos tribunais acerca do ISS sobre exportações de serviços: qual é o conceito de resultado e onde ele ocorre.
Em relação à exportação de serviços de gestão de fundos e carteiras, por exemplo, as autoridades fiscais sustentam que, mesmo se o tomador estiver localizado no exterior, o resultado acontecerá no Brasil se o ativo estiver localizado aqui. Com base nas novas regras, porém, é possível sustentar que, independentemente da localização do ativo, o resultado ocorreria no local do tomador do serviço, já que, supostamente, a lei teria deslocado o recolhimento do ISS para o município do tomador.
Quaisquer que sejam os futuros desdobramentos das novas regras, elas não são autoaplicáveis. Em obediência ao texto constitucional, o ISS é um tributo de competência municipal e, ainda que suas linhas mestras sejam estabelecidas em lei complementar, os municípios devem introduzir sua própria legislação para regular a cobrança do ISS.
Por essa razão, os municípios deverão incorporar as alterações trazidas pela Lei Complementar nº 157/2016 em suas legislações internas. Esse fato também tem gerado controvérsia. Enquanto não alterar sua legislação, o município não poderá cobrar o ISS e, quando o fizer, deverá respeitar o princípio da anterioridade.
Há, inclusive, quem sustente que existe um lapso de “intributabilidade” do ISS entre a data da publicação da Lei Complementar nº 157/2016 e a data da adequação da legislação municipal às regras novas, observado o princípio da anterioridade. Isso porque os municípios onde estão localizados os prestadores de serviços não poderiam mais exigir o ISS nos moldes antigos.
Uma sociedade gestora de fundos de investimentos localizada em Curitiba conseguiu recentemente liminar favorável na Justiça Estadual para suspender a exigibilidade do ISS em relação aos serviços prestados a tomadores localizados em outros municípios. A sociedade baseou o pedido liminar no receio de ser tributada duas vezes pelo mesmo serviço. A Procuradoria-Geral do Município de Curitiba recorreu da decisão e aguarda que o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná se pronuncie sobre o assunto.