No artigo de abertura da coluna mensal “Julgamentos do Carf”, o tema não poderia ser outro senão as discussões envolvendo o voto de qualidade. A existência de um critério de desempate que favoreça seja o fisco, seja o contribuinte, permeia há bastante tempo os debates sobre a solução de conflitos no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Os colegiados do Carf são órgãos paritários, formados, na composição regimental, pelo mesmo número de conselheiros representante dos contribuintes e da Fazenda Nacional. Essa composição pressupõe a busca de um equilíbrio na interpretação da lei tributária, garantindo uma análise isenta da possível relação entre contribuinte e fisco. A questão é que a paridade resulta, muitas vezes, em empate no julgamento, acarretando a necessidade de um critério de desempate.

Até a edição da Lei 13.988/20, o único critério de desempate existente para os julgamentos no Carf era o “voto de qualidade”, que atribui a prevalência de posicionamento na manifestação do presidente da Turma (art. 25, §9º do Decreto 70.235/72). Como, por disposição do Regimento Interno do Carf, o presidente da Turma é sempre um representante da Fazenda Nacional, a prevalência do seu voto gerava questionamento sobre a existência de um viés na decisão a ser proferida.

A Lei 13.988 introduziu o art. 19-E na redação da Lei 10.522/02, criando uma segunda regra de desempate: no caso de julgamento de processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, a controvérsia será dirimida favoravelmente ao contribuinte.

A nosso ver, esse novo critério pode ser entendido como um desdobramento da regra jurídica prevista no art. 112 do Código Tributário Nacional (CTN), que contém a máxima in dubio pro contribuinte. Se não há certeza quanto aos elementos básicos da autuação, como a capitulação legal do fato; a natureza ou as circunstâncias materiais do fato; a autoria; a natureza ou graduação da penalidade aplicável, a lei tributária deve ser interpretada da maneira mais favorável ao acusado.

Ocorre que, após a publicação da nova regra de desempate, o Ministério da Economia publicou a Portaria 260/20, estabelecendo que o critério de desempate em favor do contribuinte seria aplicado exclusivamente em processos administrativos fiscais de exigência do crédito tributário (lançamento e auto de infração). As demais controvérsias a serem dirimidas no órgão administrativos (processos de compensação, discussões sobre questões processuais etc.) seriam resolvidas de acordo com o antigo critério de prevalência do voto do presidente da Turma (“voto de qualidade”).

Ao longo de 2021, quando os casos com discussões mais relevantes foram aos poucos retornando à pauta do Carf, os efeitos da coexistência desses dois critérios foram sendo verificados na prática.

Diversas controvérsias que historicamente vinham sendo resolvidas em favor do fisco passaram a ter uma solução final favorável ao contribuinte, entre elas: a possibilidade de dedução de juros sobre capital próprio retroativo (Acórdão 9101-005.757), a regularidade da trava de 30% para compensação no caso de extinção da pessoa jurídica por incorporação (Acórdão 9101-005.728) e a aplicação de acordos internacionais para fins de tributação dos lucros auferidos pelas controladas e coligadas no exterior (Acórdão 9101-005.809).

Essas mesmas matérias, quando julgadas no âmbito de um processo de compensação, foram resolvidas com a aplicação do critério de desempate do voto do presidente da Turma, na maior parte das vezes favorecendo o fisco (por exemplo, o recente julgamento do Processo 16682.720821/2011-35, que tratou da dedutibilidade do ágio na base de cálculo da CSLL e, apesar de ter sido analisado pelos mesmos integrantes da 1ª Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), teve um resultado oposto ao Acórdão 9101-005.894, do mês anterior).

A relevância desse tema parece crescer na mesma proporção dos limites de valores para julgamentos não presenciais. À medida que o Carf amplia o teto para julgamentos em modo não presencial (atualmente em R$ 36 milhões), questões mais complexas retornam à ordem do dia, e o critério para resolução do julgamento passa a valer dezenas (ou centenas) de milhões.

Essa relevância foi recentemente acompanhada de urgência: o Supremo Tribunal Federal (STF) pautou para o dia 23 de março a continuidade do julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) 6399, 6403 e 6415, que discutem a constitucionalidade do art. 28 da Lei 13.988/20, norma que “extinguiu” o voto de qualidade. A discussão no âmbito do Supremo é colocada sob dois aspectos: formal e material.

A inconstitucionalidade formal é defendida pelo fato de o art. 28 da Lei 13.988/20 ter sido inserido no texto da Medida Provisória 899/19 por emenda parlamentar e já na fase de conversão em lei, sem que a temática original da MP tenha relação de pertinência com o critério de desempate, o que representa uma violação ao devido processo legislativo (o que se chama de “contrabando legislativo” ou “jabuti”).

Assim, a Procuradoria-Geral da República (PGR), o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), que são os autores das ADIs em questão, apontam que o dispositivo que instituiu o desempate pró-contribuinte foi inserido na Lei 13.988/20 de forma indevida, sem a realização de debate pelo Poder Legislativo. O ex-ministro Marco Aurélio se filiou a essa corrente e votou pela inconstitucionalidade formal.

A inconstitucionalidade material é defendida com base na premissa de que a aplicação desse novo critério favorável ao contribuinte configuraria anulação do crédito tributário toda vez que ocorrer empate, o que ensejaria a prevalência do interesse privado em face do interesse público. Além disso, alega-se que os princípios do devido processo legal e da legitimidade do ato administrativo estariam violados.

A constitucionalidade da norma em discussão é justificada pela restauração do equilíbrio da relação entre o fisco e o contribuinte no âmbito administrativo, já que o sistema de desempate por voto de qualidade gerava uma distorção em favor da Fazenda Pública. Com o novo sistema, amplia-se a proteção dos direitos e garantias fundamentais do contribuinte contra eventuais excessos cometidos pelo Estado.

Esse foi o voto proferido pelo ministro Roberto Barroso, que entendeu que é constitucional a nova sistemática de desempate favorável ao contribuinte, desde que seja possibilitado ao fisco recorrer ao Poder Judiciário.

O julgamento dessas ações traz uma série de discussões: caso seja declarada a inconstitucionalidade da norma que “extinguiu” o voto de qualidade para os casos em que se discute cobrança tributária, como serão tratados aqueles processos que já foram encerrados por aplicação do dispositivo declarado inconstitucional?

Por outro lado, em caso de declaração de constitucionalidade, existe também a probabilidade de ser facultado ao fisco recorrer ao Judiciário para contestar as decisões proferidas favoráveis ao contribuinte?

O julgamento desse tema pelo STF é aguardado com grandes expectativas, pois seu desfecho é muito relevante para a solução de conflitos tributários no Brasil.