Em uma mudança de posicionamento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou que é possível incluir o custo dos serviços de capatazia (de carga, descarga e manuseio de mercadorias) no valor aduaneiro para fins de composição da base de cálculo do Imposto de Importação (II).[1] A decisão foi tomada no dia 1º de março pela 1ª Seção do STJ por maioria de votos e em sede de recurso repetitivo. O entendimento anterior, até então pacificado por ambas as turmas que compõem a 1ª Seção (1ª e 2ª), era favorável aos contribuintes, isto é, pela não inclusão dos serviços de capatazia no valor aduaneiro.[2]
Em síntese, prevaleceu desta vez o entendimento constante do voto de divergência do ministro Francisco Falcão (acompanhado pelos ministros Herman Benjamin, Og Fernandes, Sérgio Kukina e Napoleão Nunes),[3] no sentido de que devem ser mantidos na base de cálculo do II os serviços de capatazia prestados dentro do porto, aeroporto ou local alfandegário, já que essa seria a conclusão extraída da análise conjunta dos artigos 77 e 79 do Decreto nº 6.759/09 (que promulgou o Regulamento Aduaneiro).
Mais especificamente, o argumento vencedor entendeu que, de acordo com esses dispositivos do decreto, os serviços de capatazia integrariam o conceito de valor aduaneiro, já que tais atividades (carga, descarga, manuseio, entre outras) seriam realizadas tanto dentro do porto quanto no ponto de fronteira alfandegário, estando, portanto, dentro das hipóteses previstas no art. 77 do Regulamento Aduaneiro.
Nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei nº 37/66 (com redação determinada pelo Decreto-Lei nº 2.472/88), o valor aduaneiro, base de cálculo do II, é apurado de acordo com as normas do artigo 7º do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (Gatt), mais conhecido como Acordo de Valoração Aduaneira (AVA).
O AVA é obrigatório para todos os países membros da Organização Mundial de Comércio (OMC), como é o caso do Brasil, e foi internalizado em nosso ordenamento pelo Decreto nº 1.355/94. A internalização foi feita justamente para evitar o protecionismo exacerbado dos produtos brasileiros em relação ao importados e estabelecer um equilíbrio do mercado.
Em breve resumo, o acordo de valoração aduaneira estabelece os parâmetros que deverão ser observados para determinar o valor dos produtos importados, que serão utilizados como base de cálculo dos tributos incidentes na importação. Assim, as regras do AVA devem ser aplicadas para toda mercadoria submetida ao despacho de importação no Brasil. É exatamente o que determina o próprio artigo 76 do Regulamento Aduaneiro.
Diante disso, assume relevância para fins de identificação da base de cálculo do II o que se entende por valor aduaneiro. Essa discussão não é recente: ela já foi objeto de análise em outros importantes julgamentos, como o realizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da inconstitucionalidade da base de cálculo do PIS/Cofins-Importação, prevista pelo art. 7º, I, da Lei nº 10.865/04, especialmente na parte que acrescentava o valor do ICMS à base de cálculo dessas contribuições (RE 559.937/RS).
À época desse julgamento, deparando-se com a necessária análise do conceito de valor aduaneiro, o STF ponderou que o adotado pela Constituição Federal, considerando a internalização das normas internacionais a respeito do tema, é exatamente o definido no AVA, ou seja, o previsto no seu art. 7º (Normas sobre Valoração Aduaneira).
Analisando o disposto no artigo 7º, tem relevância para o tema “despesas com serviços de capatazia” os artigos 1º e 8º do Acordo sobre a Implementação do artigo VII do AVA. Esses dispositivos elencam expressamente quais dispêndios serão considerados pelo país-membro para determinar o valor aduaneiro (que é o valor da transação). São eles: (i) o custo de transporte de mercadorias importadas até o porto ou local de importação; e (ii) os gastos relativos ao carregamento, descarregamento e manuseio associados ao transporte das mercadorias importadas até o porto ou local de importação.
Isso significa que qualquer despesa com serviços de capatazia incorrida com o descarregamento e manuseio das mercadorias no porto de destino após a chegada das mercadorias importadas no Brasil não pode ser incluída no valor aduaneiro. Está bem claro no AVA que apenas as despesas com carga, descarga e manuseio das mercadorias importadas até o porto alfandegado poderão ser computadas no valor aduaneiro – entendimento que, ao final, restou consolidado pelo STF.
Em evidente contradição ao disposto no AVA, no entanto, a Receita Federal do Brasil (RFB) editou a Instrução Normativa nº 327/03 (IN 327/03), que estabelece normas e procedimentos para a declaração e o controle do valor aduaneiro de mercadoria importada. Segundo a regra, devem ser incluídos no valor aduaneiro os gastos relativos a carga, descarga e manuseio associados ao transporte das mercadorias importadas no território nacional.
Diante disso, por entenderem que o disposto na IN 327/03 violaria os termos no AVA – no que tange à possibilidade de inclusão do custo do serviço de capatazia no valor aduaneiro mesmo quando essa despesa tenha ocorrido fora dos limites do porto alfandegado – os contribuintes socorreram-se ao Poder Judiciário. Após anos de embate com a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN), a questão finalmente havia sido pacificada pelo STJ, que concluiu pela ilegalidade da inclusão. Em consequência, todos os contribuintes que discutiam o tema passaram a excluir as despesas com capatazia do valor aduaneiro para fins de recolhimento do II.
Para surpresa de todos, porém, um tema para o qual já não havia mais discussão ganhou nova luz com o julgamento ocorrido no último dia 11 de março, em que a 1ª Seção do STJ entendeu exatamente o oposto do definido há mais de três anos, para reverter o cenário até então favorável aos contribuintes, dando provimento aos recursos interpostos pela PGFN.
A alteração do entendimento consolidado pelo STJ acaba indo na contramão do próprio conceito de valor aduaneiro previsto no AVA (que se sobrepõe às leis internas do país) e ratificado pelo STF. A interpretação dada aos artigos 77 e 79 do Regulamento Aduaneiro simplesmente não se coaduna com o previsto no próprio AVA.
Além disso, a mudança de entendimento faz ruir o princípio da segurança jurídica, pilar do Estado Democrático de Direito, e leva os jurisdicionados a descrer do Poder Judiciário. Essa ruptura na segurança jurídica acarreta sérios danos ao país, já que o requisito da confiabilidade das decisões proferidas está ausente. É um elemento que que tende a aumentar o risco Brasil e afastar investidores estrangeiros.
E o que é pior: como o julgamento realizado pela 1ª Seção do STJ ocorreu em sede de recurso sob o rito repetitivo, ele deverá ser observado por todos os juízes e tribunais do país, com aplicação imediata para todos os processos que tenham a mesma discussão em andamento, conforme determinado nos artigos 926 e 927 do CPC/15.
Precisamos aguardar a publicação do acórdão, mas, em princípio, é possível que esse tema seja novamente apreciado, agora pelo STF, sobretudo à luz do que dispõe o artigo 153, I, da CF/88, combinado com o próprio AVA, como ocorreu com o RE 559.937/RS, mencionado antes.
Todos os contribuintes que já contavam com decisões favoráveis em seus processos ainda em andamento nos tribunais sofrerão com a reversão do entendimento do STJ. Não abordaremos aqui possíveis questionamentos por parte da PGFN quanto à coisa julgada que eventualmente já tenha se formado em processos encerrados para alguns contribuintes. Esse tema “espinhoso” merece ser tratado em outro artigo.
Na prática, não se sabe como o tema recém-julgado será tratado em relação ao passado, já que não houve debate no julgamento realizado pela 1ª Seção do STJ sobre eventual modulação dos efeitos da decisão. Em nosso entendimento, e para que a segurança jurídica não reste ainda mais comprometida, essa modulação, se ocorrer, deve ter aplicação prospectiva apenas.
[1] Tema 1014 – REsp 1799306/1799308/1799309.
[2] AgInt no REsp 1566410/SC, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, primeira turma, julgado em 18/10/2016, DJe 27/10/2016, AgRg no REsp 1434650/CE, Rel. Ministro Herman Benjamin, segunda turma, julgado em 26/05/2015, DJe 30/06/2015.
[3] Restaram vencidos os ministros Gurgel de Faria, Regina Helena Costa, Assusete Magalhães e Mauro Campbell. Eles entendiam que as despesas de capatazia não devem ser incluídas no valor aduaneiro, que compõe a base de cálculo do Imposto de Importação.