A Câmara dos Deputados aprovou, em 30 de março, o projeto de conversão da Medida Provisória 1.152/22 (MP 1.152/22), que introduziu a nova política brasileira de preços de transferência. Entre as alterações sofridas pela MP, destacam-se:
- a ampliação dos referenciais utilizados no caso das commodities (artigo 13 da MP),[1] que passaram a admitir o emprego dos preços praticados entre partes não relacionadas e dos preços públicos, além dos preços de cotação já previstos na redação original;
- a exclusão do ajuste secundário (artigos 17, IV[2] e 19[3] da MP), já que “estimularia o contribuinte a buscar o ajuste compensatório [...], adequando não a base de cálculo [...], mas os valores praticados nas negociações”;[4] e
- a supressão da vedação à dedutibilidade dos pagamentos de royalties e de assistência técnica envolvendo partes residentes em países de tributação favorecida ou que sejam beneficiárias de regimes fiscais privilegiados (artigo 45, I, da MP),[5] “pois o simples fato de a detentora [...] estar situada em paraíso fiscal não significa que a dedução não é devida”.[6]
O projeto foi enviado ao Senado Federal, que deverá analisá-lo e aprová-lo nos próximos dias. A conversão da MP 1.152/22 precisa ser concluída até 1º de junho para manter sua eficácia.
Para um melhor entendimento sobre o assunto, analisamos, neste artigo, os fundamentos que embasam a nova política brasileira de preços de transferência.
O princípio do arm's length
De acordo com o artigo 2º da MP, a nova política brasileira de preços de transferência se orienta pelo princípio do arm’s length, pelo qual, para determinar a “base de cálculo [do IRPJ e da CSLL deve-se observar] [...] os termos e as condições [...] que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas em transações comparáveis”.
Na sequência, o artigo 3º descreve as transações controladas e, portanto, sujeitas ao regime de preços de transferência, como toda e “qualquer relação comercial ou financeira entre duas ou mais partes relacionadas, estabelecida ou realizada de forma direta ou indireta, incluídos contratos ou arranjos sob qualquer forma e série de transações”.
O artigo 4º complementa que as “partes são relacionadas quando no mínimo uma delas estiver sujeita à influência, exercida direta ou indiretamente por outra [...], que possa levar ao estabelecimento de termos e condições em suas transações que divirjam daqueles que seriam estabelecidos entre partes não relacionadas [...]”. As hipóteses são exemplificadas no § 1º.
Expressão inglesa adotada pela legislação brasileira, arm’s length significa literalmente a “distância de um braço”. Dado que a proximidade societária ou pessoal entre as partes contratantes pode influenciar as condições de negócio pactuadas entre elas, a lei se vale dessa metáfora para exigir que se observe um distanciamento entre partes relacionadas. Com isso, é possível comparar a transação como se tivesse sido concluída por partes independentes, em condições negociais similares.
Em um exemplo, imagine que pais decidam vender aos filhos um imóvel. As condições desse contrato – preço, termos e formas de pagamento, e garantia – em geral são diferentes daquelas aplicadas quando o contrato envolve pessoas com outro tipo de laço. Isto é, a relação familiar e a consequente proximidade entre os contratantes influenciam e permitem que as condições de negócio sejam diferentes daquelas aplicadas no mercado, criando benefícios e prejuízos que ordinariamente não existiriam.
A proximidade, em si, não constitui um abuso ou ilícito. A ciência econômica, inclusive, explica o impacto desse fenômeno com a teoria dos custos de transação (transaction costs theory) de Ronald Coase[7] – Prêmio Nobel de Economia.
Segundo ele, há custos intrínsecos às contratações em mercado – como custos para negociar, minutar contratos e garantir a execução destes. O mercado é, em si, custoso e imperfeito. A coordenação entre os agentes econômicos, por sua vez, possibilita reduzir esse custo. Isso mostra a sinergia intrínseca entre as partes relacionadas, já que o vínculo societário e pessoal entre elas diminui os custos referidos.
Por outro lado, a presença desses termos e condições mais benéficos ou prejudiciais constitui um instrumento para que as partes relacionadas transfiram ou mantenham rendimentos em jurisdições com menor oneração fiscal, com o objetivo de reduzir a carga tributária global. Esse fato causa a progressiva erosão das bases tributárias dos estados.
A essa perspectiva macro se soma a igualdade tributária, considerando que os demais contribuintes que observem as condições de mercado deverão suportar um ônus fiscal maior.
Em um cenário competitivo e na ausência de regras de preços de transferência, cria-se uma vantagem tributária, além da econômica, o que pode contrariar a liberdade de concorrência e o princípio da neutralidade da tributação.
Um mecanismo para corrigir o tratamento fiscal
Nesse sentido, a política de preços de transferência constitui um mecanismo de correção do tratamento fiscal para apurar a base de cálculo de maneira consistente com a renda de mercado.[8]
Não se trata, portanto, de anular a sinergia entre partes relacionadas, mas corrigir o tratamento fiscal e impedir que seja um distúrbio adicional à concorrência, para além da vantagem econômica já existente.
Por essa razão, quando se sustenta que deve haver ajustes na base de cálculo, não se altera a relação privada subjacente. Reconhece-se somente que, para fins tributários, o preço da transação, por exemplo, deveria ser diferente daquele efetivamente praticado.
As regras de preços de transferência não visam a questionar a legitimidade da transação e dos preços, ou seja, não há que se falar em subfaturamento ou superfaturamento, uma vez que as partes efetivamente contratam os preços de forma real. A lei fiscal se limita a comparar esses preços com aqueles que seriam obtidos em condições de independência (at arm’s length) e os ajusta para efeitos de apuração das bases tributárias.
Sob esse fundamento, há uma dificuldade que é intrínseca à aplicação das regras de preços de transferência: como precisar as condições de mercado?
Na grande maioria dos casos, não há preço, forma e condições contratuais únicos. Na verdade, é difícil identificar as condições de mercado, já que há uma margem de abertura que permite um leque de opções.
Percebe-se, assim, que essa construção impacta bastante o controle a ser feito pelas autoridades fiscais, pois, sob o princípio do arm’s length, o controle deve se voltar para as hipóteses em que há um desvio substancial de comportamento do mercado.
A aplicação da nova política brasileira de preços de transferência, portanto, revelará em que medida as autoridades fiscais estão atentas a esses fundamentos e poderá resultar na judicialização do tema.
[1] Redação do projeto de conversão da MP 1.152/22 (destaque em negrito para os textos incluídos): “Art. 13. Quando houver informações confiáveis de preços independentes comparáveis para a commodity transacionada, incluídos os preços de cotação ou preços praticados com partes não relacionadas (comparáveis internos), o método PIC será considerado o mais apropriado para determinar o valor da commodity transferida na transação controlada, a menos que se possa estabelecer, de acordo com os fatos e as circunstâncias da transação e demais elementos do art. 11, incluindo os ativos, funções e riscos de cada entidade na cadeia de valor, que outro método seja aplicável de forma mais apropriada com vistas a se observar o princípio previsto no art. 2º.
[...]
- 2º Os ajustes previstos no § 1º não serão efetuados se os ajustes de comparabilidade afetarem a confiabilidade do método PIC e justificarem a consideração de outros métodos de preços de transferência, na forma do art. 11.
[...]
- 5º As informações constantes de preços públicos devem ser utilizadas para o controle de preços de transferência da mesma forma que seriam utilizadas por partes não relacionadas em transações comparáveis.
- 6º Em condições extraordinárias de mercado, o uso de preços públicos não será apropriado para o controle de preços de transferência, se conduzir a resultado incompatível com o princípio previsto no art. 2º. [...]”
[2] Redação original da MP 1.152/22: “Art. 17. Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se:
[...]
IV - ajuste secundário - aquele efetuado em decorrência dos ajustes previstos nos incisos I ou III do caput.”
Redação do projeto de conversão da MP 1.152/22: Excluído o inciso IV do artigo 17 da MP 1.152/22.
[3] Redação original da MP 1.152/22: “Art. 19. Nas hipóteses em que seja realizado o ajuste espontâneo ou o ajuste primário a que se referem os incisos I e III do caput do art. 17, será também efetuado o ajuste secundário, o qual será determinado com fundamento nos seguintes critérios:
I - o valor ajustado será considerado como crédito concedido às partes relacionadas envolvidas na transação controlada, remunerado à taxa de juros de doze por cento ao ano;
II - os juros previstos no inciso I serão considerados devidos a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao período de apuração até a data em que o montante considerado como crédito for totalmente reembolsado à pessoa jurídica domiciliada no Brasil e ficarão sujeitos à tributação pelo IRPJ e pela CSLL;
III - a taxa de juros será reduzida a zero caso o montante considerado como crédito seja totalmente reembolsado ao contribuinte no Brasil no prazo de noventa dias, contado a partir:
a) de 1º de janeiro do ano subsequente ao período de apuração que provocou o ajuste espontâneo; ou
b) da data da ciência do lançamento do ajuste primário.”
Redação do projeto de conversão da MP 1.152/22: Excluído o artigo 19 da MP 1.152/22.
[4] Gabinete do Deputado Da Vitória - PP/ES, parecer da Comissão Mista sobre a Medida Provisória 1.152/22, p. 35.
[5] Redação original da MP 1.152/22: “Art. 45. Não são dedutíveis, na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, as importâncias pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas a título de royalties e assistência técnica, científica, administrativa ou semelhante a:
I - entidades residentes ou domiciliadas em país ou dependência com tributação favorecida ou que sejam beneficiárias de regime fiscal privilegiado, de que tratam os art. 24 e art. 24-A da Lei nº 9.430, de 1996; ou [...]”
Redação do projeto de conversão da MP 1.152/22: Excluído o inciso I do artigo 45 da MP 1.152/22.
[6] Gabinete do Deputado Da Vitória – PP/ES, Parecer da Comissão Mista sobre a Medida Provisória 1.152/22, p. 34.
[7] Cf. R. H. Coase, The firm, the market and the law, University of Chicago Press, 1988.
[8] Paul Kirchhof, Tributação no Estado Constitucional, São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 105.