Os profissionais que trabalham com integridade corporativa alimentaram grande expectativa em relação ao início do novo governo federal este ano, sobretudo quanto à atuação do novo ministro da Justiça, o ex-magistrado Sergio Moro, que se notabilizou pelo julgamento do maior caso de corrupção corporativa do país, a Operação Lava Jato.
Logo no quarto dia do novo governo, o ministro Moro apresentou à sociedade um projeto para alterar 14 leis, denominado “Pacote Anticrime”, com o objetivo principal de enrijecer o combate ao crime organizado e à corrupção, entre outros ilícitos.
Uma das 19 mudanças originalmente propostas e já submetidas a intenso debate social tem despertado atenção especial dos profissionais de compliance: a alteração na Lei nº 13.608/18 (que trata dos disque-denúncias em investigações policiais) a fim de incluir provisão legal para que o “denunciante de bem" ou whistleblower possa receber uma recompensa em dinheiro por suas denúncias.
O termo whistleblower, já amplamente utilizado dentro do programa de integridade de diversas empresas, deriva da literalidade de “blow the whistle” ou “soprar o apito” – no sentido de chamar a atenção para algo irregular que o indivíduo tenha presenciado ou de que tenha conhecimento, ainda que sem sua participação direta.
A proposta de Moro aborda a questão do denunciante em três diferentes esferas:
- Na perspectiva da organização do aparato estatal, a proposta determina que União, estados e municípios instalem uma ouvidoria para receber denúncias de informantes;
- Quanto à proteção ao denunciante, a proposta aponta o direito de preservação de sua identidade, a qual apenas será revelada com a sua anuência e em caso de relevante interesse público ou interesse concreto para a apuração dos fatos. Em igual sentido, a proposta dá ao denunciante que é agente público diversas garantias de não retaliação; e
- Do ponto de vista do incentivo às denúncias, a proposta prevê que, quando as informações disponibilizadas resultarem em recuperação de produto de crime contra a Administração Pública, poderá ser fixada recompensa em favor do informante de até 5% do valor recuperado.
No que se refere à obrigatoriedade de criação de canais de recebimento de denúncia para os órgãos públicos, o projeto formaliza algo que já é recomendável para as entidades privadas brasileiras e que já era obrigatório para empresas públicas e para sociedades de economia mista, uma vez que a Lei das Estatais (13.303/2016) também previu a adoção obrigatória de estruturas de gestão de riscos e controles internos, com inclusão mandatória de um canal de denúncias para o recebimento de relatos de infração às regras internas da companhia, assim como mecanismos de proteção para que denunciantes não fossem retaliados.
Nos trechos que tratam da proteção ao denunciante, o decreto busca garantir a ele o direito ao sigilo em medida relevante e salutar. Além disso, para os informantes que exercem função pública, a proposta buscou fazer o que muitas empresas que criaram suas políticas internas sobre denúncias têm feito: disciplinar a proteção do denunciante de boa-fé contra qualquer tipo de retaliação, inclusive apontando que o agente que realizar ou omitir um ato para retaliar um informante estará cumprindo uma infração funcional.
Contudo, o ponto da proposta que mais despertou atenção foi a possibilidade de participação do informante no valor recuperado pelo Estado em virtude de sua colaboração.
A ideia de recompensa ao denunciante como mecanismo de incentivo às denúncias não é nova e já consta do texto atual da Lei nº 13.608/18. Contudo, a nova proposta inova ao vincular a recompensa efetivamente a uma proporção do recuperado aos cofres públicos, ideia que tem origem nos Estados Unidos da América, onde o tema é explorado em maior profundidade e onde já há previsão de recompensa caso a dica fornecida pelo whistleblower à United States Securities and Exchange Commission (SEC, o equivalente à Comissão de Valores Mobiliários no Brasil, a CVM) de fato dê origem a uma sanção aplicada à empresa infratora.
De acordo com a legislação americana, as dicas para a SEC podem tratar de diversos temas atinentes a potenciais irregularidades relacionadas às companhias de capital aberto que negociam valores nos EUA, o que inclui possíveis infrações ao Foreign Corrupt Practices Act (FCPA),[1] norma americana semelhante à Lei nº 12.846/2013, ou Lei Anticorrupção.
Nos EUA, o sistema parece estar gerando bons resultados. Entre 2011 e 2017, a SEC recebeu mais de 22 mil dicas sobre potenciais irregularidades,[2] e o programa gerou até 2017 mais de US$ 1 bilhão em remediações de caráter financeiro. Já os whistleblowers receberam mais de US$ 300 milhões a título de recompensa.[3]
Entretanto, enquanto a proposta do novo governo busca beber da experiência americana para incentivar novas investigações e fazer crescer a recuperação de ativos por parte do Estado brasileiro, também é verdade que ela ainda parece demasiadamente genérica para a aplicação imediata, caso venha a ser transformada em lei.
Se nos EUA a legislação traz uma série de limitações, condições e procedimentos a serem cumpridos para que o whistleblower receba recompensa,[4] a proposta brasileira tão somente versa sobre a sua possibilidade, parecendo, assim, delegar para um eventual decreto a regulamentação necessária para a aplicabilidade prática do instituto. Esse fato cria um certo grau de preocupação para especialistas em integridade corporativa por criar um cenário de insegurança jurídica em uma área que já padece de respostas legais claras.
No mesmo sentido, enquanto veem com bons olhos o incentivo às denúncias de boa-fé, os especialistas têm se preocupado com a possibilidade de que a ausência de contornos legais claros e o demasiado protagonismo dos canais de denúncia da administração pública na proposta venham a desidratar os canais de denúncia implementados pelas próprias empresas privadas.
A disponibilização de canais pelas empresas para recebimento de informações e a determinação de mecanismos para proteger o denunciante estão previstas no Decreto nº 8.420/2015, que regulou a Lei Anticorrupção. Tais canais têm sido largamente utilizados pelas corporações para iniciar investigações internas e para responder ou prevenir casos de corrupção antes mesmo que eles ocorram.
Um exemplo da preocupação do mercado é que a nova legislação – caso não seja bem regulamentada – acabe por desestimular funcionários a buscar tais canais, uma vez que a materialização de um ato lesivo passível de prevenção internamente poderia levar o caso à administração pública e gerar recompensa financeira para o denunciante.
Nesse sentido, apesar de apresentar uma estratégia interessante, a proposta demanda maior detalhamento para que constitua avanço efetivo. Em sua tramitação, o recomendável é que o Congresso Nacional inclua no debate os especialistas em integridade corporativa do setor privado.
[1] https://www.sec.gov/whistleblower/frequently-asked-questions
[2] https://www.sec.gov/page/whistleblower-100million