O Digital Markets Act (DMA), em tradução livre, Lei dos Mercados Digitais, é a nova lei da União Europeia (UE) que tem como propósito inicial tornar o mercado digital mais justo e competitivo. A norma entrou em vigor em 1° de novembro de 2022, mas a regulamentação passará por uma fase de implementação e a lei somente será aplicada de fato a partir de 2 de maio de 2023.
Além do DMA, o Digital Services Act (DSA) e o Data Governance Act (DGA) são outras legislações que serão colocadas em prática em breve e, com o DMA, integram uma estratégia ambiciosa da União Europeia de tornar a década atual a “Década Digital”. Para que isso ocorra, a Comissão Europeia propôs algumas metas para a transformação digital da Europa até 2030.
A fim de alcançar o objetivo proposto, o DMA busca limitar o poder dos gatekeepers, empresas que fornecem serviços essenciais de plataforma, como intermediação on-line, mecanismos de busca, rede social, compartilhamento de vídeos, comunicações interpessoais, sistemas operacionais, computação em nuvem e publicidade.
O regulamento estabelece alguns critérios para identificar um gatekeeper:
- ter uma posição econômica forte e ativa em, no mínimo, três países da UE;
- explorar um serviço essencial de plataforma que serve de porta de acesso para os usuários profissionais chegarem aos usuários finais; e
- ter uma posição de mercado sólida.
Segundo o instituto de pesquisa britânico Center for Economic Policy Research (CEPR), esses critérios não alcançarão apenas os negócios principais dos players gigantes, mas também os de outras plataformas.
O rol de obrigações de um gatekeeper abrange situações relacionadas a conflito de interesses que surgem no relacionamento entre ele e seus usuários de negócios. Trata também da preservação do direito de contestação nos mercados relevantes, com incentivo ao multi-homing, à comutação, à redução das barreiras de entrada e ao aumento da transparência.
A proibição de o gatekeeper combinar dados pessoais – salvo se tiver sido apresentada uma possibilidade de escolha específica ao usuário final e este tiver dado o seu consentimento – é uma das obrigações previstas pelo regulamento, por exemplo.
A esse respeito, o regulamento veio na mesma direção do precedente alemão. Em 2019, a Autoridade de Concorrência Alemã (Bundeskartellamt) proibiu uma plataforma de mídias sociais de combinar dados de usuários. Na época, os termos e condições da empresa previam que os usuários só poderiam utilizar a rede social sob a condição prévia de que ela pudesse coletar dados do usuário fora do site, ou em aplicativos de smartphone, e atribuir esses dados à conta do usuário.
Outra importante obrigação autoexecutável é a permissão para que os usuários empresariais promovam ofertas e celebrem contratos com usuários finais adquiridos na plataforma por meio de canais fora da plataforma.
Nesse sentido, a Comissão Europeia anunciou, em 2020, a abertura de investigações antitruste destinadas a avaliar as regras estabelecidas por um fabricante de smartphones para desenvolvedores de aplicativos. A investigação tratou do uso obrigatório do sistema de compra dentro do aplicativo e das restrições à capacidade dos desenvolvedores sobre possibilidades alternativas de pagamento. Além de limitar o meio de pagamento, a empresa cobrava uma taxa de comissão sobre as transações.
Quanto ao direito de contestação, o DMA prevê que o gatekeeper deve fornecer aos anunciantes e editores informações sobre o preço pago pelo anunciante e a remuneração paga ao editor pelos serviços de publicidade. Isso visa a coibir a obtenção de vantagem em detrimento de competidores e anunciantes e conferir maior transparência ao processo.
A regulamentação também trouxe outras novidades que têm sido objeto de discussões. A primeira seria a possibilidade de os usuários instalarem aplicativos de outras lojas de distribuição.
A segunda seria a interoperabilidade de programas de mensagens instantâneas. Isso obrigaria um programa a receber mensagens de aplicativos concorrentes.
Na hipótese do descumprimento de algumas das obrigações previstas no regulamento, a comissão poderá aplicar multa aos gatekeepers de até 10% do seu volume total de negócios no ano anterior e impor multas diárias de até 5% do faturamento médio diário.
E no Brasil?
A Superintendência Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (SG/Cade) instaurou recentemente um inquérito administrativo contra um mecanismo de busca por práticas em um sistema operacional. No documento que abre o inquérito, a SG se baseia na condenação da empresa na Comissão Europeia, que considerou ilícitos os acordos de exclusividade entre ela, fabricantes de celulares e operadoras de redes móveis.
Na mesma linha concorrencial, uma empresa de comércio eletrônico abriu processo contra uma fabricante de smartphones no Cade por práticas anticompetitivas. Em comunicado, a empresa alegou que o fabricante impõe restrições à distribuição de bens digitais e compras no aplicativo, incluindo a proibição de aplicativos de distribuição de produtos e serviços digitais de terceiros, como filmes, música, videogames, livros e conteúdo escrito.
Diante dessa recente movimentação e da importância do DMA, não só pelos impactos às grandes empresas de tecnologia, mas também por promover um mercado digital mais competitivo, há grande possibilidade de o Digital Markets Act inspirar legislação semelhante aqui no Brasil – assim como a General Data Protection Regulation (GDPR) exerceu forte influência na criação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Já existe até mesmo sinalização nesse sentido com o Projeto de Lei 2.768/22.
Esse projeto, apresentado à mesa diretora da Câmara dos Deputados no dia 10 de novembro, visa alterar o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Telecomunicações e atribuiria à Anatel o poder de regulamentar e fiscalizar as plataformas digitais. A agência ficaria responsável por expedir normas sobre a operação das plataformas digitais que oferecem serviços ao público brasileiro, aplicar sanções, deliberar na esfera administrativa sobre a interpretação da legislação aplicável às plataformas digitais, além de compor administrativamente situações relacionadas a conflitos de interesse.
Apesar de sua criação ter sido influenciada pelo DMA, o Projeto de Lei 2.768/22 apresenta algumas distinções em seu texto inicial.
Exemplo disso é a criação do Fundo de Fiscalização das Plataformas Digitais (artigo 15). Para compô-lo, as plataformas digitais que oferecem serviços ao público brasileiro seriam obrigadas a pagar uma taxa anual equivalente a 2% da sua receita operacional bruta.
O projeto ainda classifica as plataformas digitais como detentoras do poder de controlar acesso essencial quando obtiverem receita operacional anual igual ou superior a R$ 70 milhões com a oferta de serviços ao público brasileiro (artigo 9º).
Quanto às sanções administrativas, o texto prevê advertências, multa de até 2% do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último ano de exercício, obrigação de fazer ou não fazer, suspensão temporária das atividades e proibição de exercícios das atividades (artigo 16).
A tendência, portanto, é que, apesar de terem se consolidado em um ambiente com menos regulamentação, as grandes empresas de tecnologia precisarão se adequar a um ambiente cada vez mais regulamentado. Ao que tudo indica, a GDPR é apenas a ponta do iceberg. Tanto o DMA como o DSA vêm para sacramentar essa nova realidade que, ao que tudo indica, não se limitará somente ao território europeu.
Tratando-se de nova regulamentação sobre o ambiente digital, há inúmeras discussões. Afinal, todos querem obter o máximo proveito da tecnologia e da inovação, e a regulamentação, de certa forma, desacelera esse processo. No entanto, estabelecer medidas de combate a práticas anticoncorrenciais no ambiente digital gera potencialmente um ambiente mais justo, propício ao desenvolvimento econômico e benéfico aos usuários.