Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o primeiro grau do Poder Judiciário contava com um acervo de 78 milhões de ações no final de 2023. Mais da metade desses processos (56,5%) eram referentes a execuções e cumprimentos de sentença. Ou seja, a maior parcela dos litigantes brasileiros aguarda o cumprimento forçado de uma obrigação (a mais comum delas, a obrigação de pagar), proveniente de título executivo judicial ou extrajudicial.
O cenário é tão complexo e desafiador que levou os poderes Executivo e Legislativo a tomarem uma atitude há quase quatro anos, com a sanção da Lei de Ambiente de Negócios (Lei 14.195/21), oriunda da Medida Provisória 1.040/21.
A norma tem como um de seus propósitos “facilitar a recuperação do crédito, reduzindo o tempo de tramitação das ações de cobrança, dando-lhes maior eficiência e reduzindo a alta taxa de congestionamento dos processos de execução”.[1]
A preocupação no cumprimento e na celeridade da tramitação das execuções continua a preocupar os poderes Executivo e Legislativo. O Projeto de Lei 6.204/19 (PL 6.204/19), da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), por exemplo, propõe a criação da execução extrajudicial de dívidas, que passaria a ser uma das atribuições das tabeliães de protesto. O PL aguarda votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e está na pauta prioritária do governo federal.
Obter o cumprimento de uma obrigação (como a de pagar) pode ser tão desafiador que diversas mudanças legislativas recentes tiveram como objetivo criar atalhos para agilizar esse processo. A insolvência e a dificuldade de localização de bens de parte dos devedores trazem ainda mais complexidade ao contexto dos processos executivos, conhecidamente morosos e, muitas vezes, ineficientes na recuperação ou obtenção de crédito.
Nesse cenário, o ordenamento jurídico estabelece hipóteses em que é possível instaurar incidente de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) para responsabilizar os sócios ou administradores pela dívida contraída pela empresa, como disposto no artigo 133 do Código de Processo Civil[2] (CPC), desde que preenchidos determinados e estritos requisitos legais.
No âmbito do direito privado, por exemplo, o artigo 50 do Código Civil[3] estabelece como requisito a existência de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.
A instauração do IDPJ tem o objetivo de direcionar os atos expropriatórios contra terceiros – que não figuravam originalmente no polo passivo. A esses terceiros deve ser dado o direito ao contraditório e à ampla defesa em toda extensão, já que sua esfera jurídica pode ser diretamente impactada pela decisão no incidente.
Posições adotadas pelas turmas do STJ desde 2020
Nesse contexto, o STJ foi provocado a se manifestar sobre a possibilidade de fixação de honorários advocatícios na hipótese de rejeição do pedido formulado em incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Em 2020, no julgamento do REsp 1.845.536/SC, a Terceira Turma do STJ entendeu ser descabida a condenação em honorários advocatícios em incidente de desconsideração da personalidade jurídica. O fundamento apresentado foi de que o artigo 85 do CPC[4] estabelece que os honorários advocatícios são arbitrados em sentença. Não haveria, portanto, previsão legal para a condenação na verba honorária no IDPJ – resolvido por meio de decisão interlocutória. Em 2021, no julgamento do AgInt no AREsp 1.691.479/SP, o entendimento foi mantido pela Quarta Turma do STJ, também sob o fundamento da ausência de previsão legal.
No fim de 2023, a Quarta Turma do STJ permanecia fiel ao seu entendimento, porém, a Terceira Turma do STJ, no julgamento do REsp 1.925.959/SP, por maioria de votos, alterou sua posição anterior e entendeu ser possível a condenação em honorários advocatícios em IDPJ, apesar da ausência de previsão expressa do CPC.
O fundamento central do acórdão consistiu em reconhecer que a instauração do incidente objetiva a formação de um litisconsórcio. Ao se envolver um terceiro no processo, com a necessidade de que ele se defenda, o pedido formulado no IDPJ atinge uma esfera jurídica diferente da dos litigantes na ação principal.
Em resumo, pela linha do novo entendimento da Terceira Turma do STJ, o resultado do IDPJ geraria uma intervenção de terceiro e um possível litisconsórcio. Pela aplicação do princípio da causalidade, que deve orientar a fixação dos honorários, na concepção da Terceira Turma do STJ, incluir de forma indevida terceiros no litígio seria causa suficiente para impor o ônus sucumbencial.
Vale ressaltar que o STJ já havia manifestado entendimento, sem divergências, de que é cabível a condenação de honorários de sucumbência para as hipóteses em que o IDPJ é julgado procedente.[5]
A ausência de previsão no CPC e a divergência jurisprudencial das turmas do STJ fizeram o tema ser levado à Corte Especial, composta pelos 15 ministros mais antigos do STJ, para estabilizar a questão.
Além da divergência em relação ao tema, é preciso considerar o cenário do grande volume de processos de execução em curso no país e a utilização comum do IDPJ nesses processos para a recuperação de créditos. A matéria, portanto, tem inegável repercussão e impacto nacional.
Posição recente pacificada pela Corte Especial do STJ
No recente julgamento do REsp 2.072.206/SP a Corte Especial do STJ entendeu pela possibilidade de fixação de honorários advocatícios na hipótese de rejeição do pedido formulado em incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Antes de analisar o tema e diante do cenário de complexidade da questão no Brasil, o STJ ouviu representantes de entidades civis, como a Ordem dos Advogados do Brasil, o Instituto Brasileiro de Direito Processual e a Federação Brasileira de Bancos (Febraban).
A íntegra da decisão proferida nos autos do REsp 2.072.206/SP ainda não foi publicada e cabe recurso. Sem prejuízo, a decisão da Corte Especial sinaliza a uniformização de um tema que vem sendo intensamente debatido nos tribunais brasileiros, ao decidir pela possibilidade da condenação da parte credora ao pagamento de honorários advocatícios da parte contrária, na situação de rejeição do IDPJ.
Isso, sem dúvida, pode tornar mais custosa a atuação do credor em busca da satisfação de seu crédito, proveniente de uma obrigação de pagar.
A partir de agora, o credor que instaurar o IDPJ para atingir o patrimônio dos sócios de sociedade devedora poderá ser condenado a arcar também com honorários dos advogados desses terceiros, além das tradicionais custas e despesas processuais.
O cenário exigirá, portanto, uma análise mais ponderada dos riscos envolvendo a estratégia para instauração e condução de IDPJ, inclusive em relação às provas necessárias para a desconsideração da personalidade jurídica.
[1] Mais detalhes na exposição de motivos da MP 1.040/21
[2] Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
[3] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
[4] Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor.
[5] Sobre o tema, ver o AgInt no AREsp 2.131.090/SP, 4ª Turma, relator ministro Marco Buzzi, julgado em 27 de março de 2023.