O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) julgou, em 8 de agosto de 2023, um procedimento administrativo referente a um artigo do provimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) que versa sobre o procedimento de constituição de alienações fiduciárias de bens imóveis em Minas Gerais.

Em breve contexto, o Provimento Conjunto 93/2020 do TJMG (Provimento 93), regulamentou a celebração de alienação fiduciária e limitou a constituição por instrumento particular às entidades do Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI), cooperativas de crédito ou administradora de consórcio de imóveis.[1]

Essa disposição não segue diretamente a legislação federal sobre a alienação fiduciária. A Lei 9.514/97, que dispõe sobre o SFI e instituiu a alienação fiduciária de coisa imóvel, em seu art. 22, §1º, permite expressamente que pessoas físicas ou jurídicas, independentemente de operarem no SFI, contratem a alienação fiduciária.

A interpretação do TJMG, no entanto, não é seguida pela maioria dos tribunais de justiça do país, cujos regulamentos permitem a contratação por instrumento particular, sem limitar tal prerrogativa às entidades que operam no SFI. Nesse sentido, a título de exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) dispõe sobre o tema da seguinte forma:

229. Os atos e contratos referidos na Lei nº 9.514/1997, ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública.

Em consonância com a interpretação do TJMG, que limita a constituição de alienação fiduciária por instrumento particular às entidades que operam no SFI, somente os Tribunais de Justiça do Estado da Bahia (TJBA), do Estado do Pará (TJPA), do Estado do Maranhão (TJMA), e do Estado da Paraíba (TJPB) impõem restrição similar.

Evolução da regulamentação do TJMG sobre o tema

Ao analisar a redação dos dispositivos que versaram sobre o tema nos provimentos anteriores do Conselho Geral de Justiça de Minas Gerais (CGJMG), verifica-se que, em determinado momento, houve uma mudança no entendimento sobre a imposição de limitação.

Em 2013, o Provimento 260 do CGJMG regulamentava de forma similar ao Provimento 93, ou seja, limitando a constituição de alienação fiduciária por meio de instrumento particular às entidades que operam no SFI. No entanto, em 2015 o CGJMG, nos termos do provimento 299, retirou da redação a limitação e passou a regular o tema da seguinte forma:

“Art. 852. Os atos e contratos relativos à alienação fiduciária de bens imóveis e negócios conexos poderão ser celebrados por escritura pública ou instrumento particular, nos termos do art. 38 da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997.”

Essa regra vigorou por dois anos, até que em 2017 o CGJMG retomou a redação que limita a utilização do instrumento particular para a contratação da alienação fiduciária. Essa regulamentação permaneceu vigente até os dias atuais e, agora, foi corroborada pelo CNJ.

Competência do CNJ

O CNJ é um órgão do Poder Judiciário previsto na Constituição Federal, que foi instituído pela Emenda Constitucional 45/04. Seus 15 membros são eleitos por um mandato de 2 anos, incluindo ministros dos tribunais superiores, juízes de tribunais federais, membros do ministério público, além de advogados e cidadãos, conforme previsto no art. 103-B da Constituição.

Na discussão em evidência, o CNJ é provocado a interferir no caso com base em suas competências, que paralelamente determinam que o CNJ zele pela autonomia do Poder Judiciário e pela legalidade dos atos administrativos praticados pelos órgãos do Poder Judiciário.[2]

Assim, no caso em questão, o papel do CNJ foi julgar a legalidade das restrições impostas pelo TJMG e entender se a limitação imposta às entidades não integrantes do SFI constitui ato administrativo do órgão, perfeitamente legal, sendo respaldada a sua autonomia.

No entanto, é importante destacar que há um limite a ser respeitado, referente à incompetência do órgão para legislar sobre qual tema for. Nos termos da Constituição Federal, o ato de legislar é restrito à União e, em determinados casos, a competência é dos estados e municípios. Ao CNJ, entre outras funções, cabe regulamentar, mas sempre nos termos previstos em lei.

Nesse sentido, e com base na interpretação do art. 22, §1º, da Lei 9.514/97 (de que não há qualquer limitação sobre a contratação da alienação fiduciária), ao limitar direitos não expressos pela legislação vigente, a decisão do CNJ pode ser futuramente discutida, com base nas restrições inerentes à sua competência.

Decisão do CNJ sobre o tema

Devido às restrições impostas pelo TJMG descritas anteriormente, uma empresa interessada em celebrar um instrumento particular de alienação fiduciária propôs uma ação de controle administrativo ao CNJ. O objetivo era anular o ato administrativo do TJMG que limita os direitos de pessoas físicas e jurídicas que não operam no SFI.

No entendimento de tal empresa, a normatização feita pelo TJMG está em claro desacordo com o disposto na legislação federal sobre a alienação fiduciária de bens imóveis e, por conta disso, seria ilegal restringir a celebração de alienação fiduciária por instrumento particular às instituições do SFI.

Em suma, na visão adotada, o ato administrativo do TJMG não poderia impor restrições que não estivessem expressamente previstas na legislação federal. Isso se deve à existência de lei específica que regula a celebração da alienação fiduciária e que não reflete a limitação mencionada.

O TJMG, por outro lado, sustenta que as legislações devem ser interpretadas em harmonia, valendo-se da “teoria do diálogo das fontes” e, nesse sentido, com base na previsão do art. 108 do Código Civil,[3] seria justa a vedação disciplinada nas normas extrajudiciais.

Na sessão de julgamento, todos os conselheiros do CNJ acolheram os argumentos do TJMG. Assim, o pedido da empresa em questão foi negado e permaneceu válida a restrição debatida, que foi considerada razoável.

Dessa forma, seguem vigentes em Minas Gerais (e demais estados que regulam o tema de forma semelhante) as restrições sobre a possibilidade de celebrar a alienação fiduciária por instrumento particular.

A exigência de formalizar a alienação fiduciária por escritura pública afeta os custos, prazos e até mesmo os termos do contrato. Isso ocorre porque o tabelião precisa concordar com a redação do acordo.

Dessa forma, é fundamental analisar as normas aplicáveis ao local do negócio assinado e, sendo o caso, avaliar a melhor opção para a pactuação do acordo.

 


[1] Provimento Conjunto nº 93/2020 da Corregedoria-Geral de Justiça do TJMG: Art. 954. Os atos e contratos relativos à alienação fiduciária de bens imóveis e negócios conexos poderão ser celebrados por escritura pública ou instrumento particular, desde que, neste último caso, seja celebrado por entidade integrante do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI, por Cooperativas de Crédito ou por Administradora de Consórcio de Imóveis.

[2] Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de 15 (quinze) membros com mandato de 2 (dois) anos, admitida 1 (uma) recondução, sendo: [...]

  • 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:

I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;

II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;

[3] Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.