Uma polêmica em torno das regras de produção de citros chegou recentemente ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.045, ajuizada pelo partido Movimento Democrático Brasileiro (MDB). A ação questionava a constitucionalidade da exigência de produção de mudas de citros com substrato que não contenha solo,[1] estabelecida no artigo 28 da Instrução Normativa 48/13 (IN 48/13), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
O mérito da ADI não chegou a ser analisado pela corte, já que a ministra Carmen Lúcia, relatora da ação, em dezembro de 2021, apontou vícios processuais e negou prosseguimento, decisão que transitou em julgado em fevereiro deste ano.
Pelo peso dessa cultura na economia do país – o Brasil é líder mundial na produção e exportação de laranjas e de suco concentrado –, vale fazer um breve histórico dos fatos que servem de contexto para a formulação do artigo 28 da IN 48/13 e avaliar se, realmente, a norma por ele estabelecida fere a Constituição.
O estado de São Paulo concentra a maior produção de laranja e de suco de laranja do mundo[2] e desenvolve grande trabalho na área de pesquisa e desenvolvimento,[3] atividade vital para a modernização do setor e sua adequação às crescentes exigências regulatórias, tanto no âmbito interno como externo. Essas exigências estão expressas, por exemplo, em requisitos da regulamentação estatal[4] e certificações de organismos independentes.
Particularmente no segmento da citricultura, é cada vez maior a exigência em relação à qualidade dos produtos e à forma como são produzidos, além da preocupação com os impactos sobre o meio ambiente e a forma como os benefícios sociais dessa atividade estão sendo distribuídos.
Algumas dessas questões já estavam de certa forma presentes no final dos anos 1990, quando houve uma mudança de tecnologia na instalação e produção de viveiros de mudas e sementes de citros. A medida visava evitar a propagação de doenças que impactavam a produção da citricultura no país e que poderiam colocar em risco o ambiente, a saúde dos consumidores e impactar a economia.
Até 1997, a produção de mudas para o plantio de citros no estado de São Paulo ocorria a céu aberto, o que facilitava a propagação de doenças, especialmente aquelas cuja contaminação ocorre diretamente pelo solo.[5] Com a Portaria CATI-7/1998,[6] proibiu-se a comercialização e o transporte de porta-enxertos e mudas cítricas produzidas nesse ambiente, o que contribuiu para conter a propagação de doenças e pragas.
Atualmente, toda a produção de viveiros de citros em São Paulo segue a legislação estadual e federal sobre o tema, e busca alinhar-se aos avanços tecnológicos e científicos alcançados na área.
O artigo 28 da IN 48/13 se insere nesse contexto. Mas, ao dispor que “será permitida a produção de mudas de citros somente com a utilização de substrato que não contenha solo”, estaria ele afrontando a Constituição?
No âmbito federal, o artigo 1 da Lei 10.711/03 estabelece que o sistema nacional de sementes e mudas, “instituído nos termos desta lei e de seu regulamento”, “objetiva garantir a identidade e a qualidade do material de multiplicação e de reprodução vegetal produzido, comercializado e utilizado em todo o território nacional”.
Ou seja, há expressa autorização legal de regulamentação por atos infralegais. A mesma interpretação pode ser dada ao artigo 23, caput e §4º, que condiciona o processo de certificação das sementes e mudas e a produção à observância “das normas e padrões pertinentes”.
Além disso, o artigo 2 do Decreto Federal 10.586/20, que regulamenta a Lei Federal 10.711/03, estabelece que compete ao Mapa “a edição dos atos e normas complementares previstos neste Decreto”.
Também merecem destaque o artigo 54, que estabelece que o “processo de produção de mudas compreende a produção de material de propagação e a produção da muda no viveiro ou na unidade de propagação in vitro, conforme o disposto em norma complementar, e é finalizado com a emissão da nota fiscal de venda pelo produtor”, e o artigo 102, que dispõe que as “operações comerciais de exportação e de importação de material de propagação serão realizadas de acordo com as disposições deste Decreto e de norma complementar”.
Conclui-se, portanto, que o disposto na IN 48/2013 seguiu a legislação federal sobre a matéria, diante da expressa autorização para o Mapa regulamentar a produção de mudas e sementes.
Do ponto de vista da Constituição, o STF tem entendimento consolidado de que o “texto constitucional de 1988 é claro ao autorizar a intervenção estatal na economia, por meio da regulamentação e da regulação de setores econômicos”, desde que de acordo com os princípios da ordem econômica.[7]
Por tudo isso, não nos parece possível afirmar que o artigo 28 da IN 48/2013 viola a Lei Federal 10.711/03 ou a Constituição e, portanto, não caberia o questionamento nos termos da ADI 7045.
[1] Em 2017, terminou o prazo para os produtores se adequarem a essa norma.
[2] Essa concentração nos traz um dado relevante: a cada cinco copos de suco de laranja consumidos no mundo, três foram produzidos no país. As informações sobre o setor de citros e do mercado de laranja podem ser consultadas no sítio eletrônico da Associação Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos (CitrusBR). Disponível em: https:// https://citrusbr.com/estatisticas/. Acesso em: 3.4.2021.
[3] Vide atuação do Instituto Agronômico (IAC), que mantém em Cordeirópolis, interior do estado, o Centro de Citricultura Sylvio Moreira, e também várias parcerias com diversas associações e fundações.
[4] Nesse cenário, ganha relevo o recém-criado Prêmio “Selo Mais Integridade”, por meio da Portaria 402, de 23 de fevereiro de 2022, do Mapa, destinado a premiar empresas e cooperativas do agronegócio que desenvolvam boas práticas de integridade, ética, responsabilidade social e sustentabilidade ambiental.
[5] Por exemplo, a Phytophthora (Phytophthora nicotianae, que é a causa comum de podridão do pé e da raiz, e Phytophthora palmivora, que causa a podridão marrom dos frutos, bem como a podridão da raiz em solos mal drenados com lençóis freáticos altos). Informações disponíveis em: https://citrusbr.com/noticias/greening-prejudica-manejo-de-patogeno-na-florida/. Acesso em: 2.4.2022. E as Nematoides, organismos de tamanhos variados e abundantes no solo e na água. Informações disponíveis em: https://maissoja.com.br/o-que-sao-nematoides/. Acesso em: 2.4.2022.
[6] SÃO PAULO (Estado). Portaria CATI 7, de 10 fevereiro 1998. Diário Oficial do Estado, Poder Executivo, São Paulo, 13 fev. 1998. Seção 1.
[7] “(...) o texto constitucional de 1988 é claro ao autorizar a intervenção estatal na economia, por meio da regulamentação e da regulação de setores econômicos. Entretanto, o exercício de tal prerrogativa deve-se ajustar aos princípios e fundamentos da Ordem Econômica, nos termos do art. 170 da Constituição. Assim, a faculdade atribuída ao Estado de criar normas de intervenção estatal na economia (...) não autoriza a violação ao princípio da livre iniciativa, fundamento da República (art. 1º) e da Ordem Econômica (art. 170, caput) - (RE 422.941 - Rel. E. Ministro Carlos Velloso DJ 24.03.2006).