O contrato de alienação fiduciária, regulado pela Lei 9.514/97, é um negócio em que o devedor transfere a propriedade de um bem ao credor como garantia. A propriedade adquirida pelo credor, portanto, está vinculada e condicionada ao pagamento da dívida. Caso a dívida seja totalmente paga, a propriedade é revertida ao devedor fiduciante. Por outro lado, se este não efetuar os pagamentos, a propriedade passa ao patrimônio do credor, caso este opte por executar a garantia.[1]
No recente julgamento do Recurso Especial 2.135.500/GO, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) debateu se, em contrato de alienação fiduciária de bem imóvel, o direito de o credor fiduciário pedir a execução extrajudicial do instrumento contratual, com base na Lei 9.514/97, se manteria, mesmo na hipótese de o registro desse contrato de garantia no registro de imóveis ter ocorrido somente após um longo período – particularmente, após o ajuizamento de ação de rescisão contratual pelo devedor fiduciante.
Em 27 de setembro de 2023, a Segunda Seção do STJ já havia decidido, no julgamento dos Embargos de Divergência em Recurso Especial 1.866.844/SP, que a ausência de registro do contrato de alienação fiduciária:
- não eximiria o devedor de suas obrigações contratuais em relação à Lei 9.514/97 – e portanto permaneceria válida e eficaz a “cláusula que autoriza a alienação extrajudicial do imóvel em caso de inadimplência”; e
- não permitiria o devedor fiduciante rescindir o contrato de alienação fiduciária com base na ausência de registro e ainda pleitear a devolução das parcelas pagas.
No entanto, o Recurso Especial 2.135.500/GO diverge da situação analisada pelo STJ no recurso mencionado, já que se considerou que a inércia no registro do contrato de alienação fiduciária foi deliberada e ocorreu quando o credor tomou conhecimento de que o devedor não tinha mais interesse em manter o contrato.
O STJ interpretou que o registro, feito após um longo período de tempo, seria uma manobra para evitar a aplicação das disposições do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e do Código Civil (CC) ao caso concreto, pois as duas normas seriam menos benéficas ao credor do que a Lei 9.514/97.
Com base nesse fundamento, a Terceira Turma decidiu pela impossibilidade de se admitir que a escolha do momento para registrar no cartório os contratos envolvendo alienação fiduciária fique integralmente a critério do credor, devendo ser observada a boa-fé objetiva no caso concreto.
Nesse sentido, a Corte deliberou que “o registro não pode se tornar uma ilimitada ‘carta na manga’ do alienante para, no momento que lhe for conveniente, afastar o CDC e o CC para fins de rescisão contratual”, até porque esse cenário levará à incidência do instituto da supressio, que impõe um limite ao exercício de direitos ao seu titular “pelo seu não exercício durante decurso de prazo extenso”.[2]
É importante frisar que o STJ não estabeleceu, no julgamento do REsp 2.135.500/GO, o prazo limite para registro do contrato de alienação fiduciária, após o qual se daria a supressio.
Entretanto, os ministros da Terceira Turma fixaram que o registro no cartório, ocorrido após o ajuizamento da ação judicial, impediria o regime de execução extrajudicial da alienação fiduciária, pois seria uma conduta contrária ao princípio da boa-fé objetiva, que também se impõe aos contratos de alienação fiduciária – desde a negociação até a execução do contrato.
Mais uma vez, o STJ reconheceu a importância do registro do contrato de alienação fiduciária no cartório de registro de imóveis competente, como disposto no artigo 23 da Lei 9.514/97, para assegurar a constituição e a exequibilidade da garantia real. Além disso, criou um parâmetro temporal para a realização desse ato com eficácia constitutiva, proibindo que o exercício do registro seja adiado a critério do credor, em especial para evitar questionamento da contraparte.
Como ocorreu no caso em análise, na hipótese de requerimento de rescisão do contrato pelo devedor, o credor poderá se ver impedido de exercer seus direitos previstos no contrato de alienação fiduciária (execução extrajudicial do contrato e a consolidação da propriedade), diante do entendimento do STJ de que essa conduta violaria a boa-fé e prejudicaria em demasia o devedor fiduciante.
[1] CHALHUB, Melhim Namem. Alienação Fiduciária: negócio fiduciário. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 307.
[2] STJ, REsp 1.338.432/SP, min. Humberto Martins, Quarta Turma, DJe 27 de novembro de 2017.