A pandemia de covid-19 atinge, com maior ou menor gravidade, os mais diversos setores da economia, impedindo ou gerando dificuldades para empresas e pessoas físicas cumprirem seus contratos. Diante dessa situação, quais são as soluções jurídicas aplicáveis?

Embora uma pandemia como essa seja uma experiência inusitada para os brasileiros, o direito, no decorrer de sua longuíssima evolução histórica, desenvolveu, como resposta para crises e períodos conturbados, institutos para regular problemas dessa natureza. Esses institutos tratam do problema da alteração superveniente das circunstâncias contratuais e seus efeitos sobre a relação contratual, como forma de suavizar a dureza do princípio tradicional pacta sunt servanda (“os contratos devem ser cumpridos”).

No direito civil brasileiro atual, os seguintes institutos são mais comumente empregados: teoria da imprevisão, onerosidade excessiva, caso fortuito e força maior.

Explicamos a seguir cada um deles, indicando seu fundamento legal e as consequências práticas de sua aplicação:

Teoria da imprevisão

Requisitos

Consequências

Lei: previstos na primeira parte do artigo 317 do Código Civil (“Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução [...]”).

Lei: previstas na segunda parte do artigo 317 do Código Civil (“[...] poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”).

Doutrina:

·       Contrato de longa duração.

·       Imprevisibilidade do evento superveniente: não pode estar inserido nos riscos ordinários do contrato (epidemia é considerada um evento imprevisível por grande parte da doutrina).

·       Ausência de mora da parte que requer a aplicação da teoria.

·       Quebra do equilíbrio contratual de maneira a causar desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução.

·       Há doutrina que defende ter o artigo 317 do Código Civil a função apenas de permitir a correção do valor das obrigações em um período que o Judiciário não reconhecia a legalidade da correção monetária – função que perdeu o sentido após a inserção de vários dispositivos que tornam obrigatória a atualização monetária.

Doutrina:

·       Diante da extrema dificuldade para o cumprimento do contrato, permite-se a revisão do valor das prestações contratuais.

Jurisprudência:

·       A jurisprudência não costuma distinguir teoria da imprevisão da onerosidade excessiva.

·       Iguais aos da doutrina, por vezes exigindo-se também os requisitos da onerosidade excessiva.

·       Caso relevante: diante do cenário comum de crises macroeconômicas no Brasil, a jurisprudência já reconheceu que não podem ser considerados fatos imprevisíveis mudança de moeda, inflação, variação cambial, maxidesvalorização, crise econômica, aumento do déficit público, majoração de alíquotas.

Jurisprudência:

·       Revisão do valor das prestações contratuais ou aplicação das consequências da onerosidade excessiva.

·       Caso relevante: manutenção da obrigação, sem revisão ou rescisão do contrato.

Onerosidade excessiva

Requisitos

Consequências

Lei: previstos na primeira parte do artigo 478 do Código Civil (“Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis [...]”).

Lei: previstas no Código Civil, na segunda parte do artigo 478 (“[...] poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.”), no artigo 479 (“A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.”) e no 480 (Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.).

Doutrina: Os mesmos da teoria da imprevisão, com a adição dos requisitos a seguir:

·       Extrema vantagem para uma das partes, decorrente de evento imprevisível e extraordinário; e

·       Excessiva onerosidade para a contraparte, advinda do mesmo evento imprevisível e extraordinário.

Caso se trate de relação de consumo, a imprevisibilidade do fato superveniente não é necessária, bastando a onerosidade excessiva para o consumidor (também chamada de teoria da base objetiva do negócio).

Doutrina:

·       Diante da extrema dificuldade para o cumprimento do contrato, primeiramente, tenta-se a revisão contratual (com a possibilidade de o réu modificar equitativamente as condições do contrato) e, caso não seja possível a revisão, há a rescisão do contrato.

Jurisprudência:

·       Iguais aos da doutrina.

·       Não há casos concretos de aplicação da teoria por causa de epidemia (por ausência fática, não necessariamente pela razão de a jurisprudência não considerar epidemia como um evento imprevisível).

·       Caso relevante I: contratos de leasing afetados pela desvalorização súbita do real em janeiro de 1999 e significativa valorização do dólar norte-americano, prejudicando a capacidade do consumidor de cumprir suas obrigações (teoria da base objetiva do negócio).

·       Caso relevante II: contratos de compra e venda de safra futura de soja afetados pela “ferrugem asiática” – variações na cotação do projeto são fatos previsíveis.

Jurisprudência:

·       Iguais às previstas pela doutrina.

·       Caso relevante I: onerosidade excessiva repartida igualmente entre as partes.

·       Caso relevante II: a venda de safra futura, a preço certo, em curto espaço de tempo, teve de ser cumprida pelas partes, sem revisão ou rescisão do contrato.

Caso fortuito e força maior

Requisitos

Consequências

Lei: previstos no parágrafo único do artigo 393 do Código Civil (“O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”).

Lei: previstas no caput do artigo 393 do Código Civil (“O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.”).

Doutrina:

·       Fato superveniente e necessário, não imputável à parte.

·       Com efeitos inevitáveis.

·       Doutrina diverge sobre a imprevisibilidade ser requisito ou não.

·       Distinção entre fortuito interno (relacionado aos riscos da atividade da parte) e fortuito externo (independente dos riscos da atividade da parte).

Doutrina:

·       Diante impossibilidade do cumprimento da obrigação, parte impossibilitada não é responsabilizada pelo descumprimento.

·       Fortuito interno: não há exoneração da responsabilidade; fortuito externo: há exoneração da responsabilidade.

 

Jurisprudência:

·       Se o risco de epidemia estiver inserido na atividade da parte, não há caso fortuito ou força maior (por exemplo, atividades hospitalares).

·       Contudo, não há precedentes sobre uma pandemia igual à do coronavírus, que afeta todos os setores econômicos.

·       Caso relevante: greve dos caminhoneiros (maio/2018) qualificada como situação de força maior/fortuito externo, quando se comprova o nexo causal entre a greve e a impossibilidade de cumprir a obrigação.

Jurisprudência:

·       Não há, automaticamente, um direito à revisão ou rescisão do contrato. É preciso verificar a duração e o impacto do caso fortuito ou força maior, bem como as previsões do contrato sobre as questões.

·       Caso relevante: exoneração da responsabilidade da parte pelo descumprimento da obrigação (em relação às mais diversas consequências. Ex.: exoneração do pagamento de multa e do pagamento de indenização por perdas e danos).

 

 

Essa é uma visão geral e bastante simplificada dos institutos, com o objetivo apenas de fornecer uma primeira explicação. O problema da alteração das circunstâncias, por seu caráter excepcional, obviamente depende sempre de uma análise circunstancial. De forma mais analítica, o problema depende de diversos fatores, como:

  • Natureza do contrato: de longo ou curto prazo; tipo contratual; natureza das obrigações contratadas (de meios, de resultado ou de garantia); se o contrato é comutativo ou aleatório.
  • Existência de cláusulas a respeito do tema.
  • Ramo do direito aplicável ao contrato: se sujeito ao direito civil, direito do consumidor, direito do trabalho, direito administrativo etc.
  • Ramo de atividade da parte contratada afetada pela alteração das circunstâncias.
  • Verificação do real impacto das novas circunstâncias sobre a capacidade da parte contratada de cumprir suas obrigações.
  • Existência ou não de alternativas para que, a despeito das novas circunstâncias, a parte contratada continue a cumprir suas obrigações.
  • Apuração à luz do direito, em especial da boa-fé objetiva, para verificar se as medidas tomadas pela parte contratada podem ser consideradas razoáveis, seja para, na medida do possível, continuar a cumprir suas obrigações, seja para proteger outros interesses (por exemplo, a saúde de seus colaboradores).

A aplicação de cada instituto conduz a diferentes efeitos. No caso da teoria da imprevisão, o resultado que pode ser alcançado é, em princípio, a revisão dos valores do contrato, com o objetivo de reestabelecer o equilíbrio econômico prejudicado pelo evento. Para a onerosidade excessiva, o pedido feito pela parte atingida é de rescisão contratual (ou, no caso de contratos que geram obrigações apenas para uma das partes, a revisão do contrato), cabendo à outra parte a possibilidade de oferecer ajustes ao contrato com o objetivo de manter o vínculo, porém em novas bases. Por fim, para a força maior, o resultado é, em primeiro lugar, a exoneração da responsabilidade por descumprimento contratual e, em segundo lugar, a suspensão do cumprimento da obrigação ou a rescisão contratual, conforme o impedimento seja temporário (ou seja, perdure por um prazo que, após superados os seus efeitos, as partes ainda tenham interesse no cumprimento da obrigação) ou definitivo (os efeitos perdurem por um prazo que inviabiliza a contratação).

Outra seara em que os institutos acima descritos terão efeitos diversos é a dos contratos administrativos. Há nesse gênero inúmeras espécies regidas por leis distintas e que, por isso, devem ter tratamento casuístico. De qualquer forma, a regra geral do direito administrativo brasileiro (consubstanciada no art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal e no art. 65 da Lei nº 8.666/93) aponta para o fato de que, diante de evento imprevisível ou, ainda, previsível mas de consequências incalculáveis, a Administração Pública será responsável pelo reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Ou seja, ainda que o evento pudesse ser classificado como atinente aos institutos da teoria da imprevisão, onerosidade excessiva ou força maior, a consequência será a assunção dos danos pela Administração Pública e não o compartilhamento entre as partes, como acontece nos contratos regidos pelo direito privado.

O tratamento distinto dos contratos administrativos, que pode parecer mais favorável ao privado, se assenta justamente no fato de que, ao participar de uma licitação, o ente privado precifica seu contrato dentro de condições de risco, mas não de total incerteza, causada por eventos de natureza imprevisível ou previsível, mas de consequências incalculáveis. Assim, a precificação dos contratos depende da assunção das incertezas pela Administração Pública, já que, do contrário, não seria possível eleger uma proposta vencedora. Além disso, os entes privados que contratam com a Administração Pública também estão sujeitos a alterações contratuais e assunção de ônus, em virtude do poder de alteração unilateral dos contratos e continuidade na prestação dos serviços mesmo em condições financeiras adversas, aos quais não se sujeitam os privados nas relações entre si. Consequentemente, o reequilíbrio é a proteção do sujeito privado que contrata com a Administração Pública.

Essa regra geral vem tendo tratamento próprio em contratos de concessão de serviços públicos, regidos pela Lei nº 8.987/95 (concessões comuns) ou pela Lei nº 11.079/04 (PPPs). Por serem contratos de longo prazo, eles preveem alocação de risco própria. No entanto, mesmo nessa espécie de contratos administrativos, os eventos de força maior, sobretudo aqueles não seguráveis, tendem a ser alocados à Administração Pública, seguindo a regra de que a imprevisibilidade total deve ser alocada à Administração Pública. Os serviços públicos no geral sofrerão, portanto, impacto sensível e, muito provavelmente, sem precedentes, em razão da pandemia. É fácil notar alguns setores que serão ainda mais afetados, como prestadores de serviços públicos de transporte coletivo de passageiros ou cargas, operadores de infraestrutura logística (rodovias, aeroportos, ferrovias e portos) e prestadores de serviços de saúde, entre outros.

Assim, se por medidas de perda de demanda ou por aumento de obrigações, com a adoção de novos protocolos e turnos para atender ao estado de emergência decretado pela União, muitos estados e alguns municípios, é fato que a imprevisível pandemia gerará consequências que não poderão ser tratadas sem o reequilíbrio das avenças com a Administração Pública. A forma e a intensidade de cada reequilíbrio dependerão da identificação do impacto e da natureza do serviço.

Assim, no presente momento, dependendo das circunstâncias de cada contrato, todos os institutos acima podem ser aplicáveis para contratos cujo cumprimento tenha sido prejudicado de forma substancial pela covid-19.

Em relação a novos contratos firmados com conhecimento dos efeitos da covid-19, é muito importante que as partes tratem expressamente – e, se possível, de forma detalhada – da alocação dos riscos da pandemia. Para eles, a possibilidade de revisão contratual com base nos institutos acima apontados, especialmente a teoria da imprevisão e a onerosidade excessiva, será reduzida em razão da previsibilidade dos efeitos econômicos e sociais da crise.

Este artigo serve como uma orientação inicial para o problema, não suprindo a necessidade da análise das circunstâncias concretas de cada situação sob consulta.