Um dos grandes desafios a serem enfrentados pelas organizações nesses tempos de capitalismo multistakeholder será a integração de fatores ambientais, sociais e de governança corporativa (ESG – Environmental, Social and Corporate Governance, na sigla em inglês) no seu planejamento estratégico, modelo de negócios e cultura organizacional. Diferentemente da sustentabilidade ambiental, que é um assunto já conhecido pelas empresas, a agenda ESG passa a ser um esforço mais amplo para monetizar, contabilizar e refletir em números as preocupações ambientais, sociais e de governança nas decisões de financiamento e investimento de mercados, fundos, investidores e financiadores.[1]
Temos acompanhado mensagens claras de investidores institucionais, de alocadores de capital, de organismos internacionais e da academia alertando que a função da empresa é “gerar valor para todos os stakeholders” (Business Roundtable, 2019) e “gerar valor compartilhado e sustentável” (World Economic Forum, 2020). O movimento ESG ganhou ainda mais destaque, em janeiro de 2020, com a carta anual do CEO da BlackRock, Larry Fink, a seus acionistas ao redor do mundo, anunciando uma guinada nas políticas de investimento do grupo. A sustentabilidade passaria a ser o centro das estratégias e decisões de investimento da BlackRock, determinando uma realocação significativa de capital, a fim de mitigar os efeitos da mudança climática e fomentar a geração de valor no longo prazo.
Um ano depois, na recente carta de 2021, Fink destaca que o “risco climático é um risco de investimento”, porém ressalta que “a transição climática cria uma oportunidade histórica de investimento”, e assim a BlackRock continuará a “defender políticas públicas para ajudar a tornar o sistema financeiro mais resiliente, sustentável e equitativo, incluindo o progresso em direção à meta de neutralidade em carbono”.
Também no Brasil as iniciativas ESG terão destaque cada vez maior no estabelecimento das políticas públicas e diretrizes dos reguladores dos mercados financeiro e de capitais. Um exemplo é a agenda de sustentabilidade divulgada pelo Banco Central em setembro de 2020, a Agenda BC#, cujo papel será fundamental na alocação de recursos para o desenvolvimento de uma economia mais sustentável, dinâmica e moderna.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), por sua vez, posicionou-se como facilitadora de inovação, promovendo a agenda verde por meio do Laboratório de Inovação Financeira (LAB). Com a contribuição do LAB, em 7 de dezembro de 2020, colocou em audiência pública proposta de alteração da sua Instrução nº 480/2009, que estabelece as normas para a estrutura do formulário de referência, principal documento divulgado por companhias abertas no Brasil. A CVM enxerga um interesse crescente de investidores e um desenvolvimento acelerado do conteúdo e da forma como as informações sobre ESG são divulgadas pelos emissores, seja voluntariamente ou em decorrência de obrigações legais e regulatórias. Não devem ser descartadas futuras iniciativas mais robustas e prescritivas da regulamentação com enfoque nas questões de sustentabilidade.
Nesse novo cenário, as organizações que não forem capazes de integrar conceitos ESG nos seus modelos de negócio certamente enfrentarão desvantagens competitivas, possibilidades reais de perda de valor de suas ações e marcas, danos reputacionais e, ao final, impacto nos dividendos e no retorno do investimento. Negligenciar a integração de fatores ESG nos modelos de negócio e na análise de investimentos poderá causar uma falha de precificação, mensuração inadequada de riscos e alocação ineficiente do capital. Riscos sistêmicos podem afetar determinados segmentos, de forma que a consideração dos temas ESG se torna uma das principais caraterísticas do processo de investimento prudente.
Este novo capitalismo de stakeholders nos leva a fazer algumas perguntas importantes sobre a atuação dos administradores de companhias abertas: eles podem se recusar a implementar políticas e ações ESG alegando que seu único dever de fidúcia é buscar o retorno financeiro para os acionistas? Os administradores teriam o poder discricionário, o dever ético ou o dever legal de buscar implementar políticas e ações ESG? Esse dever seria entendido como dever de buscar valor para os acionistas sob uma perspectiva fundamentalista (correlacionando iniciativas de sustentabilidade com criação de valor no longo prazo) ou seria um novo dever fiduciário, não limitado aos acionistas, mas extensível aos diferentes stakeholders?
A Lei nº 6.404/76 (Lei das S.A.) determina que o administrador deve exercer suas atribuições “para lograr os fins e no interesse da companhia”, mas também dispõe que sua atuação deve satisfazer “o bem público e a função social da empresa” (art. 154). Além disso, o administrador tem permissão da Lei das S.A. para “autorizar a prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais” (art. 154, §4º).
Como se vê, nossa Lei das S.A. não é exclusivamente focada na maximização do lucro para o acionista. Na verdade, ela é bastante avançada neste particular, legitimando os administradores a tomar decisões que visem atender aos interesses dos stakeholders em geral, e não unicamente aos interesses dos acionistas. Não existe, em nossa legislação atual, uma obrigação específica de que os administradores mitiguem impactos negativos ou gerem impactos positivos para outros stakeholders além dos acionistas. Isso seria uma decisão de negócio que visa conciliar a solução de problemas socioambientais com retornos de investimento aos acionistas, e, portanto, protegida pela business judgment rule.
Porém, o administrador brasileiro tem outros deveres, como o dever de diligência, que exige dele o cuidado de diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios (art. 153 da Lei das S.A. e 1011 do Código Civil). No contexto atual, os investidores, o mercado, os consumidores e os colaboradores exigem que as empresas atuem respeitando princípios ESG, e já está mais do que provado que as empresas que adotam tais princípios são mais resilientes para enfrentar um cenário de crise, incertezas e instabilidades como o atual – e, com isso, geram maior valor aos acionistas.
Nesse sentido, podemos entender que a diligência esperada de um administrador no capitalismo de stakeholders foi ampliada, de forma que ele não pode se omitir na consideração de fatores ESG na tomada de decisões. Para que o administrador esteja adequadamente informado sobre riscos e oportunidades, é imperioso mapear os temas ESG. Só então ele poderá tomar decisões refletidas levando em conta os impactos para os diferentes stakeholders envolvidos. É um novo processo de decisão que exige do administrador a consideração de fatores internos e externos da organização. Embora os stakeholders não sejam titulares de direitos previstos em lei, o dever de diligência dos administradores toma novos contornos, uma vez que a negligência dos aspectos ESG tem o claro potencial de destruir valor do acionista no longo prazo.
Não há dúvida de que as empresas devem continuar perseguindo o lucro, finalidade máxima de seu interesse social. Ao mesmo tempo, porém, elas devem levar em consideração seu interesse social e os interesses de seus acionistas, colaboradores, fornecedores, clientes, membros da comunidade em que atua e do meio ambiente, entre outros stakeholders. O Manifesto de Davos 2020, resultado da 50ª reunião do Fórum Econômico Mundial, prega que os interesses de todos os stakeholders sejam levados em conta nas decisões corporativas e que o objetivo de uma empresa é envolver todas as suas partes interessadas na criação de valor compartilhado e sustentável. Em outras palavras, os órgãos da administração, como diretoria e conselhos, não devem olhar só para a geração de dividendos de curto prazo, mas também para os interesses dos demais atores que circundam a empresa.
É inegável que as iniciativas ESG já estão alterando o mundo dos negócios e investimentos e continuarão a fazê-lo. Nesses novos tempos, os investidores, consumidores e a sociedade em geral esperam mais das companhias do que a simples maximização dos lucros. As organizações que internalizarem essas responsabilidades e implementarem iniciativas ESG, atendendo às expectativas de seus stakeholders, trarão maiores benefícios de longo prazo para seus acionistas e as comunidades em que atuam. Com isso, os administradores cumprirão mais adequadamente seu dever de diligência, no melhor interesse da companhia, com a satisfação do bem público e da função social da empresa.
[1] Um importante estudo divulgado em 2020 pela BAILARD, denominado “From SRI to ESG: The Origins of Socially Responsible and Sustainable Investing – 2020”, ensina que “a análise ESG busca avaliar a materialidade dos dados não tradicionais para determinar que companhias estão mais bem preparadas para competir num mundo que enfrenta uma redução gradual de recursos naturais, um aumento de carga regulatória, população crescente e mudanças climáticas”.