A regulamentação de produtos à base de cannabis foi pauta de discussões tanto no âmbito administrativo quanto judicial na primeira quinzena deste mês.

A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) autorizou a importação de sementes, o plantio, o cultivo e a comercialização do cânhamo industrial (hemp), variedade de cannabis com teor de tetrahidrocanabinol (THC) inferior a 0,3%, para fins exclusivamente medicinais e industriais farmacêuticos – não foi estabelecido um limite relativo ao canabidiol (CBD). A decisão foi proferida no REsp 2024250/PR no dia 13 e publicada no dia 19 de novembro.

Já a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou, em 7 de novembro, a RDC Anvisa 936/24, que altera a Portaria 344/98 e prevê a possibilidade de o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) regularizar produtos à base de Cannabis sativa. A medida também autoriza médicos veterinários a prescrever esses produtos.

Confira abaixo os principais aspectos da recente decisão do STJ e da RDC 936/24.

Principais aspectos da decisão do STJ – REsp 2024250/PR

A decisão referente ao REsp 2024250/PR foi proferida no âmbito de Incidente de Assunção de Competência 16 (IAC 16) – instrumento processual que atrai a competência decisória colegiada do STJ em casos que envolvam grande repercussão social, mas sem efeito de repetição em vários processos.

De acordo com o acórdão proferido pelo STJ, as seguintes teses jurídicas foram firmadas no IAC 16:

  • De acordo com a Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), o cânhamo industrial (hemp) não pode ser considerado proscrito, já que não é apto à produção de drogas (isto é, substâncias psicotrópicas capazes de causar dependência).
  • De acordo com o Decreto 54.216/64 e a Lei de Drogas, compete ao Estado estabelecer a política pública aplicável ao manejo e ao controle de todas as variedades da cannabis. Não há, atualmente, previsão legal e regulamentação que autorize seu emprego para fins industriais diferentes dos medicinais e/ou farmacêuticos.
  • A Portaria 344/98 e a RDC Anvisa 327/19, que proíbem a importação de sementes e o manejo doméstico da planta, devem ser interpretadas de acordo com as disposições da Lei de Drogas. Essas normas, portanto, não atingem a variedade do cânhamo industrial (hemp), cujo teor de THC é inferior a 0,3%.
  • É lícita a concessão de autorização sanitária para plantio, cultivo, industrialização e comercialização do cânhamo industrial (hemp) por pessoas jurídicas, para fins exclusivamente medicinais e/ou farmacêuticos atrelados à proteção do direito à saúde. Deve-se, porém, respeitar a regulamentação a ser editada pela Anvisa e pela União – no âmbito de suas respectivas atribuições –, no prazo de seis meses a partir da publicação do acórdão que julgou o IAC 16 (nos autos do REsp 2024250/PR), que ocorreu em 19 de novembro de 2024.
  • É de competência da Anvisa e da União avaliar a adoção de diretrizes que impeçam o desvio ou a destinação indevida das sementes e das plantas e que garantam a idoneidade das pessoas jurídicas habilitadas a exercerem essas atividades, sem prejuízo de outras medidas para preservar a segurança na respectiva cadeia produtiva e/ou comercial.

Principais aspectos da RDC 936/24

Atualmente, os veterinários já prescrevem medicamentos feitos com substâncias controladas, mas não havia previsão expressa relacionada à cannabis.

Diante disso, o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) solicitou à Anvisa que revisasse as normas. O Mapa, por sua vez, solicitou à Anvisa que alterasse a Portaria 344/98 e reconhecesse a competência do ministério para avaliar e registrar produtos veterinários à base de cannabis, o que resultou na publicação da RDC Anvisa 936/24, cujos principais pontos são:

  • Inclusão de adendos em listas do Anexo I da Portaria 344/98 para permitir o uso medicinal da cannabis em animais.
  • O Mapa poderá regularizar produtos veterinários à base de cannabis para comercialização no país.
  • Médicos veterinários habilitados pelo CFMV poderão prescrever medicamentos ou produtos à base de cannabis registrados pela Anvisa, bem como produtos de uso exclusivo animal que venham a ser regularizados pelo Mapa.
  • A prescrição dos produtos à base de cannabis deverá ser feita por meio de notificação de receita tipo A – de acordo com o estabelecido na Portaria 344/98 – que deverá ser retida pelas farmácias/drogarias, como já acontece com outros medicamentos e produtos controlados.

A Portaria 344/98 e a competência da Anvisa

O Decreto 5.912/06, que regulamenta a Lei 11.343/06 e trata das políticas públicas sobre drogas e da instituição do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, confere à Anvisa a competência de publicar periodicamente listas atualizadas das substâncias ou produtos capazes de causar dependência.

Atualmente, a Portaria 344/98 é a norma que estabelece os critérios de prescrição e dispensação de substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial.

Para que atividades como a fabricação, a prescrição e a administração de drogas não sejam enquadradas como crime, é necessário que estejam especificamente previstas na Portaria 344/98 para os usos em saúde.

O Mapa, por sua vez, tem a atribuição e a competência de avaliar a eficácia e segurança de produtos de uso animal, de acordo com critérios já estabelecidos em regulamentações do próprio ministério.

Outras discussões em aberto

Desde 2015, a Anvisa permite a importação por pessoa física de produtos industrializados contendo CBD e/ou THC para uso próprio e com fim terapêutico, desde que haja prescrição médica.

Posteriormente, a agência passou a regular a importação, comercialização, prescrição médica e dispensação desses produtos no mercado brasileiro por meio da RDC Anvisa 327/19. Essa resolução deveria ser revisada três anos após a sua publicação.

O assunto está na agenda regulatória da Anvisa, como estabelece a Portaria 1.409/23, que trata dos temas que serão priorizados pela agência no biênio de 2024-2025. A expectativa é que, nos próximos meses, uma minuta de nova resolução seja aberta à consulta pública – especialmente considerando o prazo de seis meses estabelecido pelo STJ para a edição de ato normativo pela Anvisa.

No âmbito legislativo federal, a proposta mais avançada é o Projeto de Lei 399/15, que propõe a legalização do cultivo da planta para uso medicinal e industrial. Pela proposta, farmácias no âmbito do SUS ficariam autorizadas a cultivar e processar plantas de cannabis para fins medicinais, desde que cumpridas as exigências de segurança para cultivo, armazenagem, transporte e prescrição.

O texto foi aprovado pela Câmara dos Deputados, mas aguarda decisão sobre recurso interposto contra a conclusão da Comissão Especial na Mesa Diretora para ser encaminhado ao Senado.

A prática de Life Sciences & Saúde pode fornecer mais informações sobre o tema.