A Lei nº 13.800/2019, promulgada em janeiro, converteu em lei, com diversas modificações, a Medida Provisória nº 851/18, publicada logo após o incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. O objetivo foi regular os fundos patrimoniais, também conhecidos como endowments ou fundos filantrópicos. Entre as mudanças promovidas, estão a simplificação da governança dos fundos patrimoniais e a ampliação das causas a serem por eles apoiadas, com a expressa inclusão de direitos humanos, segurança pública e demais causas de interesse público.
Fundos patrimoniais são conjuntos de ativos de natureza privada instituídos, geridos e administrados por uma organização gestora com o intuito de constituir fonte de recurso de longo prazo para as instituições apoiadas ou as instituições titulares dos fundos. Como regra geral, apenas os rendimentos das doações, descontada a inflação, podem ser aplicados nos projetos. Esses fundos servem como fonte regular e estável de recursos para as instituições que têm como finalidade desenvolver projetos de educação, ciência, tecnologia, pesquisa e inovação, cultura, saúde, meio ambiente, assistência social, desporto, segurança pública, direitos humanos e demais finalidades de interesse público. Por ora, essas instituições podem ser públicas ou privadas sem fins lucrativos.
A Lei nº 13.800 trouxe importantes avanços para o incentivo de doações no país ao aprimorar a governança corporativa das organizações gestoras de fundos patrimoniais, prevendo separação de responsabilidades entre quem gere esses fundos e as instituições apoiadas. O gestor do fundo patrimonial deve prever no seu estatuto social, entre outras questões: (i) sua denominação, que deverá incluir “gestora de fundo patrimonial”; (ii) instituições apoiadas (a alteração exige quórum qualificado); (iii) obrigatoriedade de instalação de conselho de administração, conselho fiscal e conselho de investimentos (este para fundos com patrimônio superior a R$ 5 milhões), além de regras de composição, funcionamento, competências, forma de eleição ou de indicação de seus membros e a possibilidade de doadores comporem tais órgãos;(iv) forma de aprovação de políticas de gestão, investimento, resgate e aplicação dos recursos do fundo; (v) mecanismos de transparência e prestação de contas; e (vi) vedação de destinação de recursos a uma finalidade distinta da prevista no estatuto e vedação de outorga de garantias a terceiros sobre os bens que integram o fundo.
A regulamentação obriga ainda os fundos patrimoniais a (i) manter contabilidade e registros de acordo com os princípios gerais da contabilidade brasileira, sendo obrigatória a divulgação anual das demonstrações financeiras e da gestão e aplicação dos recursos em seus sites na Internet; (ii) apresentar, semestralmente, informações sobre os investimentos e, anualmente, sobre a aplicação dos recursos; (iii) adotar mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo a denúncia de irregularidades; e (iv) estabelecer códigos de ética e de conduta para dirigentes e funcionários. Organizações gestoras de fundos com patrimônio líquido superior a R$ 20 milhões devem ter suas demonstrações financeiras submetidas a auditoria independente.
A Lei nº 13.800 também prevê que o conselho de administração seja composto por, no máximo, sete membros. Compete ao órgão deliberar sobre alterações ao estatuto social, política de investimentos, normas de administração e regras de resgate e utilização dos recursos, bem como sobre demonstrações financeiras e prestação de contas da organização gestora de fundo patrimonial, entre outras matérias.
O comitê de investimentos é indicado pelo conselho de administração e tem como competência recomendar ao órgão a política de investimentos e as regras de resgate e utilização dos recursos, além de coordenar e supervisionar a atuação dos responsáveis pela gestão dos recursos e elaborar relatório anual sobre esse trabalho de gestão. Outro importante avanço da Lei nº 13.800 para a profissionalização da gestão dos fundos patrimoniais é a autorização para que a organização gestora contrate pessoa jurídica gestora de recursos registrada perante a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pague a ela taxa de performance.
O conselho fiscal deverá ser composto por três membros indicados pelo conselho de administração, sendo vedada a indicação de integrantes do conselho de administração nos três anos anteriores. Os membros do conselho de administração, conselho fiscal e conselho de investimentos poderão ser remunerados de acordo com o rendimento do fundo.
Os administradores dos fundos patrimoniais somente serão responsabilizados civilmente pelos prejuízos que causarem quando praticarem (i) atos de gestão com dolo ou em virtude de erro grosseiro; ou (ii) atos que violem a lei ou o estatuto.
A Lei nº 13.800 criou a figura da organização executora, uma instituição sem fins lucrativos ou entidade internacional reconhecida e representada no país, que poderá ser contratada pela organização gestora para auxiliar e coordenar a instituição apoiada no desenvolvimento dos projetos e programas. A lei regula a relação entre a instituição apoiada e a organização gestora, exigindo a celebração de instrumento de parceria e termo de execução de programas, projetos e demais finalidades de interesse público, os quais devem estabelecer, respectivamente, (i) o vínculo de cooperação entre elas e a finalidade de interesse público a ser apoiada; e (ii) como serão despendidos os recursos.
Os fundos patrimoniais poderão receber doações nas modalidades: (i) permanente não restrita, que se refere a recursos cujo principal é incorporado ao patrimônio permanente do fundo e não pode ser resgatado, mas os rendimentos podem ser utilizados em programas e projetos gerais; (ii) permanente restrita de propósito específico, que define recursos cujo principal é incorporado ao patrimônio permanente do fundo patrimonial e não pode ser resgatado, mas os rendimentos podem ser utilizados em projetos relacionados ao propósito previamente definido no instrumento de doação; e (iii) de propósito específico, que engloba recursos atribuídos a projetos previamente estabelecidos, cujo principal pode ser resgatado de acordo com os termos e condições previstos no instrumento de doação.
Desde que destinados a projetos culturais, os valores referentes a doações permanentes restritas de propósito específico e doações de propósito específico poderão ser deduzidos do imposto devido na declaração de imposto de renda dos doadores em 100% ou 80% da doação efetuada para pessoas físicas, observado o limite global de deduções de 6% do imposto devido; e de 100% ou 40% para pessoas jurídicas tributadas com base no lucro real, observado o limite de 4% do imposto devido, dependendo do enquadramento na Lei Rouanet.
A MP 851 também estendia a dedutibilidade das doações destinadas a outras causas como direitos humanos, segurança pública e demais causas de interesse público. No entanto, tais dispositivos da Lei nº 13.800 foram objeto de veto presidencial, por preocupações com a renúncia de receitas. Ao limitar a dedutibilidade do imposto de renda apenas às doações destinadas a projetos culturais, a lei perdeu excelente oportunidade de estimular doações para outras causas sociais e, assim, tornar os fundos patrimoniais um instrumento útil para o terceiro setor em geral. Tais vetos presidenciais serão ainda avaliados pelos deputados e senadores no prazo de 30 dias a contar de 2 de fevereiro de 2019.
As discussões em torno da edição da lei também eram uma oportunidade de abordar, em âmbito nacional ou estadual, outro problema recorrente no terceiro setor: a incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD) nas doações para causas sociais. No caso específico do estado de São Paulo, o ITCMD é de responsabilidade do donatário, aplicando-se uma alíquota de 4% (a máxima estabelecida pelo Senado Federal é de 8%) sobre o valor doado. As entidades cujos objetos sociais são promover os direitos humanos, a cultura ou o meio ambiente têm isenção desse imposto. Nos termos do art. 4º, inciso IV, do Decreto nº 46.655/02, o ITCMD não incide na transmissão de bens e direitos ao patrimônio das instituições de educação e de assistência social que gozam de imunidade somente com relação aos bens vinculados às finalidades essenciais, o que não inclui bens destinados à utilização como fonte de renda (como seria o caso do fundo patrimonial).
Considerando que o ITCMD seria aplicável na doação ao fundo patrimonial e, na maioria dos casos, na doação do fundo patrimonial à instituição apoiada, surge a preocupação de dupla tributação de recursos destinados a causas sociais.
De acordo com estudo do pesquisador Rafael Oliva, da FGV, e com o relatório Sustentabilidade econômica das organizações da sociedade civil – Desafios do ambiente jurídico brasileiro atual, da FGV Direito SP, os recursos arrecadados com ITCMD – inclusive heranças e doações – correspondem a 1% da receita corrente líquida do estado de São Paulo, e apenas 1% do total arrecadado (portanto, 0,0168% da receita corrente líquida do Estado de São Paulo) refere-se a doações a pessoas jurídicas, incluindo organizações da sociedade civil, o que demonstra a viabilidade financeira dessa renúncia fiscal.
A regulamentação dos fundos patrimoniais por meio da Lei nº 13.800 traz maior segurança jurídica para os doadores e gestores de projetos sociais, bem como melhoria na transparência e governança corporativa para o terceiro setor. No entanto, as limitações à dedutibilidade fiscal oriundas do veto presidencial colocam em dúvida o sucesso dos fundos patrimoniais como instrumento de desenvolvimento da cultura de doação no Brasil.