A promoção de programas de trainee destinados a negros e minorias é uma iniciativa inovadora cada vez mais adotada pelas empresas que almejam promover a diversidade e inclusão social. A legalidade ou não de tal ação, no entanto, tem gerado dúvidas.
A incerteza de alguns está relacionada ao fato de que tais programas se destinam exclusivamente a um grupo específico de trabalhadores, o que supostamente excluiria os restantes.
Porém, o público-alvo de tais programas são pessoas que, por muito tempo, em virtude do contexto histórico social, estiveram à margem do mercado de trabalho, sujeitas a discriminações por raça, gênero, condição social, entre outras, o que as impediu de ter acesso a oportunidades de trabalho igualitárias.
Trata-se de um grupo de pessoas que enfrentou, e ainda enfrenta, dificuldade de inserção no mercado de trabalho em virtude de obstáculos sociais e educacionais e, mesmo após sua inserção, ainda não se encontram em patamar de igualdade com os demais. É o que mostram estudos publicados pelo Insper e pelo IBGE sobre a enorme disparidade de gênero e raça nos salários pagos no mercado de trabalho no Brasil.
Dos 12 milhões de brasileiros desempregados no primeiro trimestre de 2022, 64% se declaram pretos e pardos. Eles representam, no entanto, uma parcela de 55,8% da população brasileira. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e indicam uma possível discriminação estrutural de pessoas pretas e pardas, apesar do cenário de igualdade de oportunidades.
Com relação aos cargos gerenciais o abismo é ainda maior: 68,6% são ocupados por brancos e somente 29,9% por pretos ou pardos, embora, como já dito, a população preta ou parda seja maioria no Brasil.
A fim de quebrar esse paradigma histórico e alterar o cenário social, contribuindo para promover a igualdade de oportunidades e maior diversidade para as gerações futuras, a solução tem sido as ações afirmativas voltadas para a inclusão social. Elas têm sido instituídas tanto pelo poder público, com as cotas nas universidades e em concursos públicos, como pela iniciativa privada, com programas para promover um ambiente de trabalho mais inclusivo.
Tais ações encontram respaldo em nosso ordenamento jurídico, pois estão fundadas no princípio da igualdade insculpido no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil.
Sobre esse aspecto, é relevante esclarecer que a igualdade defendida pelo nosso ordenamento não é formal e negativa, ou seja, aquela em que a lei não deve estabelecer nenhuma diferença entre os indivíduos, tratando todos igualmente. Na verdade, é uma igualdade material (real ou substancial), que reconhece as diferenças entre os indivíduos nas hipóteses e situações sociais.
Trata-se de igualdade que discrimina para não excluir, valendo-se do pensamento aristotélico demasiadamente citado, em que os iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente, na medida de suas desigualdades. Assim, denota-se que há uma diretriz que autoriza a propalada “discriminação”, para alcançar o efeito reverso de combatê-la.
Em conformidade com esse entendimento, o Judiciário tem se posicionado, nas situações que lhe foram colocadas para análise, pela legalidade de tais programas destinados a minorias e sustentado sua validade. Como se verifica no julgamento da ADPF 186, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou constitucionais as cotas como política de ação afirmativa no sistema de acesso à universidade pública.
Na mesma linha, em outubro de 2020, o STF, ao julgar a ADPF 738, firmou a constitucionalidade de medida positiva instituída pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para determinar a imediata aplicação dos incentivos às candidaturas de pessoas negras, nos exatos termos da resposta do TSE à Consulta 600306-47.
Mais recentemente, nos autos de ação civil pública, a Justiça reconheceu a validade de instituição de programa de trainee exclusivo para negros, tendo a juíza do Trabalho substituta, Laura Ramos Morais, da 15ª Vara do Trabalho de Brasília/DF, afirmado que tal programa não é discriminatório: “Ao contrário, demonstra iniciativa de inclusão social e promoção da igualdade de oportunidades decorrentes da responsabilidade social do empregador, nos termos do art. 5º, XXIII, e art. 170, III, da Constituição Federal, e está devidamente autorizado pelo art. 39 da Lei 12.288/2010”.
Assim, a nosso ver, é plenamente lícita a criação de ações afirmativas pela iniciativa privada a fim de possibilitar condições de equidade e progresso de grupos de pessoas que estiveram excluídos em virtude de discriminação por raça, gênero e outras formas correlatas de intolerância. Tais medidas não serão consideradas discriminatórias.