Foram concedidas entre o fim de fevereiro e início de março, duas liminares para empresas do ramo farmacêutico, uma pela Justiça Federal de São Paulo e outra pela Justiça Federal do Rio de Janeiro, afastando a obrigatoriedade de envio de dados pessoais e restritos ao governo federal para elaboração do Relatório de Transparência Salarial. As duas liminares também afastam a obrigação de publicar o Relatório de Transparência em sites/redes sociais.
A liminar concedida pela Justiça do Rio de Janeiro determinou ainda que a União se abstenha de exigir a participação de sindicatos profissionais na elaboração de planos de ação para mitigar desigualdade. Também dispensou a exigência de entregar o plano de ação ao sindicato.
A decisão da Justiça de São Paulo se baseia no fato de que a Portaria 3.714/23 e o Decreto 11.795/23 violam o princípio da legalidade, ao extrapolar a da seguinte forma:
- Portaria 3.714/23 – ao prever que o relatório a ser respondido pelas empresas deve ser elaborado com base em diversos dados extraídos do Portal Emprega Brasil. Isso significa que ele deve se basear no questionário elaborado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, que inclui perguntas sobre existência de plano de cargos e salários, políticas de contratação e promoção de mulheres, políticas de apoio à parentalidade e critérios para progressão na carreira; e
- Decreto 11.795/23 – ao determinar a publicação do relatório nos sites eletrônicos e redes sociais das empresas.
A decisão da Justiça do Rio de Janeiro segue a mesma linha da decisão de São Paulo ao dispor que a exigência de dados para a elaboração do relatório (Portaria 3.714/23) e a publicidade desses dados (Decreto 11.795/23) não têm respaldo legal.
Além de se fundamentar na ausência de respaldo legal, a decisão da Justiça do Rio de Janeiro se baseia em outros pontos:
- a fiscalização da igualdade salarial entre homens e mulheres pode ocorrer por outros bancos de dados mais precisos (como o eSocial);
- não é razoável exigir que esses dados devam ser publicizados inclusive em redes sociais. Essa exigência pode, inclusive, afrontar a Lei Geral de Proteção de Dados;
- não há, por enquanto, qualquer utilidade em divulgar esses dados para o público em geral, já que a igualdade deve ser assegurada entre empregados de uma mesma empresa;
- não é razoável exigir todos os dados previstos, relativos, inclusive, a políticas trabalhistas que sequer são obrigatórias; e
- distinções entre empresas do mesmo ramo não podem ser baseadas em programas e benefícios trabalhistas que não são obrigatórios.
Diante dessas decisões, seria o fim do Relatório de Transparência Salarial? Entendemos que não.
As liminares concedidas são aplicáveis somente às empresas envolvidas no pleito e não favorecem outras empresas que não obtiverem uma decisão similar – decisões resultantes de ações ajuizadas por associações ou grupo de empresas, apesar de terem maior abrangência, também só seriam aplicáveis às empresas representadas na ação.
Além disso, até o momento, essas decisões são provisórias e ainda estão sujeitas a alteração. A nosso ver, parte dos fundamentos trazidos por ambas não seriam suficientes para afastar a obrigatoriedade de publicação do relatório de forma ampla e definitiva.
Isso porque alguns dos argumentos apresentados parecem não refletir rigorosamente a legislação em vigor. É o caso, por exemplo, da alegação de violação à Lei Geral de Proteção de Dados.
Especificamente em relação a esse fundamento, apesar de o Decreto 11.795/23 e a Portaria 3.714/23 disporem que o relatório deverá conter o “valor” dos salários e remuneração, no modelo de relatório apresentado pelo Ministério do Trabalho e Emprego não aparece a identificação de qualquer empregado ou a indicação de valores de salários ou remuneração em números absolutos.
Ou seja, pelo Relatório de Transparência não seria possível identificar o salário de nenhum empregado ou sua respectiva remuneração – o que foi, inclusive, reforçado nas “perguntas frequentes” divulgadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego.[1]
Esse entendimento se aplica até mesmo quando o comparativo é feito pelo Ministério do Trabalho e Emprego, considerando o Grande Grupo de Ocupação. A lista de perguntas e respostas divulgada pela autoridade trabalhista esclarece que a comparação com base nesse critério somente será realizada se o Grande Grupo de Ocupação tiver pelo menos três pessoas de cada gênero.
Todos esses pontos possivelmente serão questionados pela União quando couber a ela se manifestar. Existe, portanto, o risco de as decisões liminares não serem mantidas.
Há, porém, outros fundamentos utilizados nas decisões que entendemos serem robustos o suficiente para garantir a não publicação do relatório, pelo menos neste momento.
Entre eles, destaca-se a indicação de que a Portaria 3.714/23 extrapolou a Lei 14.611/23 quando impôs às empresas a obrigação de responder ao questionário de informações complementares, cujas perguntas não avaliam o cumprimento de nenhuma obrigação legal imposta às empresas.
Não se pode deixar de mencionar que as decisões proferidas não analisaram a questão envolvendo a metodologia de comparação de equidade salarial, que não observa a própria Lei 14.611/23 e o artigo 461 da Consolidação das Leis do Trabalho no que se refere à realização de trabalho de igual valor ou no exercício da mesma função. Esse ponto poderia invalidar por completo o modelo divulgado pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
A nosso ver, as decisões mencionadas não têm o poder de invalidar integralmente a Lei 14.611/23, a Portaria 3.714/23 e/ou o Decreto 11.795/23, já que consideram pontos específicos desses instrumentos. No limite, a obrigação principal estabelecida (ou seja, o relatório em si) se manteria. A própria decisão proferida pela Justiça Federal de São Paulo reconhece expressamente que “nem todas as regras previstas no decreto e na portaria atentam contra o princípio da legalidade”.
Com base nesses fundamentos, entendemos que, futuramente, poderão ser feitas alterações na regulamentação, a fim de restringir os dados necessários para a elaboração do relatório e/ou a obrigação de sua publicação para o público em geral. Dificilmente, porém, a obrigação de publicar o Relatório de Transparência Salarial será extinta, já que essa obrigação foi imposta por lei.
Paralelamente, em 28 de fevereiro, foi apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 500/24 (PL 500/24) para alterar a Lei 14.611/23 e adiar a obrigatoriedade de publicação dos relatórios para 1º de janeiro de 2026.
O projeto de lei baseia-se na compreensão de que é essencial estabelecer um período adequado para que as empresas possam realizar os ajustes necessários e garantir sua conformidade com a nova legislação.
Apesar de vincular todas as empresas abrangidas pelas obrigações previstas na nova legislação, o PL 500/24 ainda precisa ser aprovado, o que demanda um caminho longo e complexo a ser percorrido.
Nesse contexto e considerando a proximidade do prazo para que as empresas preencham ou retifiquem o questionário de informações complementares, além da data-limite para a publicação do relatório, entendemos que as organizações deverão optar por uma das opções abaixo, de acordo com sua própria realidade:
- publicar o relatório do Ministério do Trabalho e Emprego, exatamente como fornecido pela autoridade trabalhista (recomendado somente se não houver discrepância salarial);
- publicar o relatório do Ministério do Trabalho e Emprego e, em conjunto, publicar o relatório próprio da empresa, em que possíveis inconsistências do relatório da autoridade trabalhista são esclarecidas; ou
- ajuizar ação judicial visando a não publicação do relatório do Ministério do Trabalho e Emprego, mas paralelamente trabalhar no relatório próprio da empresa, considerando que os precedentes ainda não estão bem sedimentados e decisões diferentes poderão ser proferidas – além de a obrigação de publicar o Relatório de Transparência Salarial continuar em vigor.
Para as empresas que optarem pelo de ajuizamento de ações, recomendamos que seja feito o quanto antes, pois o prazo para publicação do Relatório de Transparência Salarial está mantido para 31 de março (exceto para aquelas empresas que obtiverem uma decisão autorizando-as a se abster de publicar o documento).
Continuamos a acompanhar o tema e informaremos qualquer novidade.
[1] Haverá divulgação de dados individuais?
Não há possibilidade de dados individuais serem divulgados. O rigor com a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados é dever de todos. Sempre que o número reduzido de pessoas em cargos implicar na identificação destas pessoas, a informação não será divulgada. Os dados se referem às empresas e não a segmentos. Neste caso, o dado será cotejado com as demais informações solicitadas – a análise será feita a partir do conjunto, e não de apenas uma informação isolada.
[2] Como será garantido o sigilo dos empregados que possuem cargos únicos na empresa?
As informações serão disponibilizadas para grandes grupos CBO’s evitando assim a identificação de situações únicas. Para o caso desta situação persistir será aplicado tratamento estatístico indicando a possibilidade de identificação de um número identificável (até 3 de cada sexo) de empregados.