Por Gisela Mation, Leandro Felix e Mateus Zottarelli

Basta abrir o jornal do dia para se deparar com notícias sobre impasses, atrasos e suspensão na realização de obras e projetos de infraestrutura decorrentes de contratos de licitação, discussões acerca da rescisão dos contratos licitatórios e relatos sobre disputas que se arrastam por anos no Poder Judiciário sem uma resolução definitiva. Por essa razão, quando se fala de contratos de licitação, um dos pontos que mais desperta a atenção – de especialistas e leigos – é o desejo geral de prevenir disputas ou dar a elas solução célere e eficiente, sobretudo nos contratos que envolvem obras e projetos de infraestrutura, para garantir uma execução contínua, dentro dos prazos estabelecidos e de acordo com o orçamento destinado, a fim de preservar a relação contratual entre o ente privado e o agente público.

A nova Lei de Licitações (Lei Federal nº 14.133/21), sancionada no último dia 1º de abril, tem tudo para promover melhoria na gestão pública. O novo marco legal, que há muito vinha sendo pedido por especialistas, substitui a antiga Lei de Licitações (Lei Federal nº 8.666/93), a Lei do Pregão (Lei Federal nº 10.520/02) e o Regime Diferenciado de Contratações (Lei Federal nº 12.462/11), além de anexar diversos temas relacionados às contratações públicas.

Em meio a tantas alterações promovidas pela nova lei, merece destaque a inclusão do capítulo “Dos Meios Alternativos de Resolução de Controvérsias”, que– em linha com a prática legislativa recente em situações semelhantes – estabelece a possibilidade de uso dos meios adequados para prevenção e solução de conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis decorrentes dos contratos licitatórios.

A nova Lei de Licitações estabelece que, nas contratações regidas pelos seus ditames, “poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem” (art. 151).

A possibilidade de resolução de disputas no campo da arbitragem, embora não seja em si uma inovação (já que a arbitrabilidade de disputas envolvendo o poder público é matéria pacífica e de ampla aplicação prática no direito brasileiro), é bastante louvável, sobretudo porque traz maior segurança jurídica para os envolvidos.

Apesar de não haver previsão expressa nesse sentido na legislação anterior, diversos contratos públicos já tinham cláusula compromissória, as quais eram incluídas com fundamento no art. 54 da antiga Lei de Licitações, que previa a possível aplicação das “disposições de direito privado” no âmbito dos contratos de licitação. Posteriormente, a arbitrabilidade de disputas envolvendo o poder público restou superada com a reforma da Lei de Arbitragem, ocorrida em 2015. Ela acabou por confirmar o entendimento de que “[a] administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis” (art. 1º, §1º).

No que diz respeito à arbitrabilidade objetiva das disputas envolvendo o poder público, a nova Lei de Licitações – de forma bastante positiva – também se alinha ao que já é a prática arbitral consolidada. A lei traz um rol de hipóteses em que litígios relacionados às licitações versarão sobre direitos patrimoniais disponíveis, como questões relacionadas a:

  • restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato;
  • inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes; e
  • cálculo de indenizações.[1]

No entanto, sendo esse rol meramente exemplificativo, outras disputas decorrentes dos contratos de licitação, desde que versem igualmente sobre direitos patrimoniais disponíveis, também poderão ser resolvidas por arbitragem.

O legislador fez questão de prever que qualquer procedimento arbitral que envolva contratações públicas sob a égide da nova Lei de Licitações deverá ser sempre de direito e observará as diretrizes do princípio da publicidade. Essa disposição vai também ao encontro do que prevê a Lei de Arbitragem desde 2015: “[a] arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade” (art. 2º §3º).

A nova Lei de Licitações estabelece que os contratos licitatórios poderão ser aditados para permitir a adoção dos meios alternativos de solução de conflitos. Nesse ponto, a intenção do legislador converge com os enunciados nº 10 e nº 18 da I Jornada de Direito Administrativo, que dispõem, respectivamente, sobre a possibilidade de:

  • a Administração Pública propor aditivo aos contratos administrativos decorrentes de licitação com objetivo de incluir métodos alternativos ao Poder Judiciário para resolução de conflitos; e
  • inclusão de cláusula compromissória nos contratos administrativos, ainda que não haja previsão em edital para isso.

Novamente, portanto, a Lei de Licitações atual caminhou bem no sentido de favorecer a adoção da arbitragem em disputas decorrentes de contratos licitatórios.

Se em matéria de arbitragem a nova lei não apresenta maiores novidades, o que certamente chama a atenção é a possibilidade de se usar um comitê para resolução de disputas, os disputes boards, que poderão tratar de quaisquer questões relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis que decorram dos contratos licitatórios. A utilização dos dispute boards tem como principal objetivo evitar que o surgimento de disputas durante a execução do contrato impacte no desempenho das partes ou resulte no desperdício dos recursos destinados à execução contratual.

Os dispute boards são um conselho, geralmente designado no início da execução do contrato e composto por profissionais imparciais que têm como objetivo:

  • acompanhar o progresso e o desenvolvimento do projeto;
  • incentivar a prevenção de disputas; e
  • ajudar na resolução de eventuais controvérsias, mediante a emissão de recomendações ou decisões, que, por sua vez, serão vinculantes às partes contratantes.

A ideia é que o comitê intervenha de modo rápido e efetivo, para prevenir ou solucionar um impasse, alocando responsabilidades com base em uma interpretação independente das cláusulas contratuais, de acordo com as peculiaridades fáticas e técnicas de cada caso.

O comitê de resolução de disputa é composto por três membros, os quais, nos termos do art. 154 da nova Lei de Licitações deverão ser nomeados segundo critérios isonômicos, técnicos e transparentes”. É aconselhável que a escolha dos profissionais se paute, sobretudo, no seu conhecimento técnico, sem deixar de lado que o painel mescle profissionais cujo know-how tenha relação direta com as características do projeto e aqueles cujo conhecimento possa ser útil na interpretação legal das cláusulas contratuais.

Os dispute boards podem ser caracterizados como permanentes, mantendo-se em funcionamento ao longo de toda a relação contratual, ainda que não surjam controvérsias entre as partes, ou ad hoc, quando serão formados apenas se surgirem desavenças contratuais, permanecendo ativos até o pronunciamento da decisão.

As partes poderão estabelecer quais serão as regras aplicáveis ao comitê, podendo optar, para dar maior segurança aos envolvidos, por uma instituição especializada cujo regulamento específico terá o atributo de orientar o procedimento extrajudicial.

De acordo com a natureza da decisão a ser proferida, os dispute boards podem ser classificados nas seguintes modalidades:

  • os Dispute Review Boards, que proferem recomendações de natureza não vinculante;
  • os Dispute Adjudication Board, cujas decisões são de adoção obrigatória pelas partes, ressalvado, contudo, o direito de uma parte, após comunicação à outra, questionar a decisão perante o Poder Judiciário ou no âmbito da arbitragem, conforme o caso; e
  • os Combined Dispute Boards, que mesclam as modalidades anteriores, emitindo recomendações e decisões, a depender da circunstância.

Nos casos das disputas potencialmente decorrentes dos contratos a serem firmados no âmbito da nova Lei de Licitações, especialmente aqueles que tenham como objeto a construção de obras públicas e projetos de infraestrutura, em que sabidamente o nível de complexidade é mais elevado, uma das principais vantagens dos dispute boards é evitar que os trabalhos sejam paralisados ou até inviabilizados em razão de disputas técnicas. Essa preocupação já havia sido manifestada pelo Conselho da Justiça Federal, em 2016, por meio do enunciado nº 80 da I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, o qual recomendava “[a] utilização dos Comitês de Resolução de Disputas (Dispute Boards), com a inserção da respectiva cláusula contratual, (...) para os contratos de construção ou de obras de infraestrutura”, de modo a permitir “[a] imediata resolução de conflitos surgidos no curso da execução dos contratos”.

Nessa mesma oportunidade, também foi reconhecida a legalidade dos dispute boards, na forma prevista pelo § 3° do art. 3º do Código de Processo Civil,[2] e a devida vinculação das partes quanto às decisões proferidas pelo comitê até que o Poder Judiciário ou o juízo arbitral competente emita nova decisão ou a confirme, caso provocado por uma das partes.[3]

A previsão de disputes boards na nova Lei de Licitações, além de inovadora em âmbito federal, é elogiável e segue a tendência que já vinha sendo observada nas esferas municipais e/ou estaduais. Esse é o caso do município de São Paulo, que, em atenção à importância que vem sendo atribuída a esse recurso, promulgou a Lei nº 16.873/18, recentemente regulamentada pelo Decreto nº 60.067/21. Tal regulamentação permite que as partes envolvidas em contratos continuados firmados com a municipalidade prevejam os dispute boards como forma de prevenir e solucionar, de forma prática e eficiente, quaisquer disputas que venham a surgir durante a relação entre as partes, de modo que não seja preciso interromper o andamento do projeto e, assim, se possa manter a devida continuidade na execução dos contratos.

Em linhas gerais, portanto, verifica-se que o legislador levou em consideração, na redação da nova Lei de Licitações, todo o desenvolvimento dos meios alternativos de resolução de controvérsias na esfera pública – que, ano após ano, não para de crescer – e acertadamente incluiu um capítulo específico para tratar sobre o tema. Essa previsão de maneira expressa, além de oferecer maior segurança a todos os envolvidos, certamente trará maior eficiência para as companhias interessadas em contratar com a Administração Pública, haja vista toda celeridade e especificidade que os meios extrajudiciais podem proporcionar aos interessados. A inserção dos dispute boards aponta, acima de tudo, o contínuo esforço em prol da consolidação do uso dos meios extrajudiciais de solução de conflitos.

 


[1]    Tais disposições seguem o que já foi discutido na I Jornada de Direito Administrativo, por meio do enunciado nº 19, o qual destaca que “as controvérsias acerca de equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos integram a categoria das relativas a direitos patrimoniais disponíveis” e, assim sendo, se admitirão os “meios extrajudiciais adequados de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem”.

[2]    Enunciado nº 49: "Os Comitês de Resolução de Disputas (Dispute Boards) são método de solução consensual de conflito, na forma prevista no § 3° do art. 3º do Código de Processo Civil Brasileiro."

[3]    Enunciado nº 76: "As decisões proferidas por um Comitê de Resolução de Disputas (Dispute Board), quando os contratantes tiverem acordado pela sua adoção obrigatória, vinculam as partes ao seu cumprimento até que o Poder Judiciário ou o juízo arbitral competente emitam nova decisão ou a confirmem, caso venham a ser provocados pela parte inconformada."