A Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85) antecede à Constituição Federal de 1988 (CF/88) e busca garantir aos cidadãos, desde que foi aprovada, melhores instrumentos de acesso à Justiça. Além disso, a ação coletiva garante eficácia de larga extensão (efeitos erga omnes), viabiliza a concentração de demandas, dá celeridade jurisdicional e proporciona economia (processual, financeira e pessoal) ao Poder Judiciário. Trata-se de um eficaz instrumento de pacificação de demandas.
Em avanços processuais e de escopo, a CF/88 promoveu a expansão do objeto das ações civis públicas para também incluir a tutela dos direitos individuais e coletivos por entidades representativas – e posterior ampliação por meio da Lei nº 11.448/07, que estabeleceu a atual redação do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública. De acordo com o artigo, têm legitimidade para propor ação: o Ministério Público; a Defensoria Pública; a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; as autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista; e associações, desde que observadas algumas particularidades (alíneas a e b).
Foi também após o Código de Defesa de Consumidor que se ampliou o escopo e o objeto das ações civis públicas, com a confirmação da possibilidade de ajuizamento de ação coletiva para a tutela de “interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum” (art. 81, III, do CDC). É esse ponto que analisaremos a seguir.
A tutela coletiva para defesa de “interesses ou direitos individuais homogêneos” perpassa a existência de um fato originário que a qualifica como um interesse “individual homogêneo”. Há um elemento inicial de identidade do fato que se estende a todos aqueles afetados por esse mesmíssimo elemento: o desmoronamento de um prédio, o rompimento de uma barragem, o não fornecimento de esgoto para uma região. É o evento da vida que indicará quem são os afetados pela sentença que será proferida na ação coletiva, como destaca a jurisprudência do STJ e melhor doutrina:
“A origem comum, que caracteriza o interesse individual homogêneo, refere-se a um específico fato ou peculiar direito que é universal às inúmeras relações jurídicas individuais, a partir dos quais haverá conexão processual entre os interesses, caracterizada pela identidade de causa de pedir próxima ou remota.” (STJ, REsp 1599142/SP, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 25.09.2018)
“O legislador pátrio quis valorizar a gênese comum existente entre os direitos individuais homogêneos (pedidos com origem no mesmo fato de responsabilidade do fornecedor), inspirando-se na class action do direito norte-americano para dar ao consumidor uma prestação jurisdicional acessível, célere, uniforme e eficiente.” (STJ, REsp 1281023/GO, rel. min. Humberto Martins, 2ª T., j. 16.10.2014)
"A origem comum, na medida em que surjam como consequência de um mesmo fato ou ato, e a homogeneidade que os caracteriza implicam a perda de sua condição atômica e estruturalmente isolada e a sua transformação em interesses merecedores de tratamento processual supraindividual.”[1]
"Por fim, os direitos individuais homogêneos são aqueles de origem comum (art. 81, parágrafo único, III, CDC). Apesar das críticas lançadas à definição legal, não subsiste dúvida de que os titulares de direito individual homogêneo podem legitimamente agir em juízo, em demandas atomizadas, em nome próprio, defendendo interesse também próprio. Todavia, o tratamento como categoria de direito transindividual decorre de opção legislativa, em prol da harmonia de julgamentos e, sobretudo, da economia processual. O direito individual homogêneo é aquele que afeta mais de um sujeito em razão de uma gênese comum, cujo objeto é divisível. Normalmente, a coletividade de consumidores prejudicados pela aquisição de um mesmo produto defeituoso é que ostenta a titularidade de direito individual homogêneo."[2]
A sentença judicial proferida na ação civil pública em tutela de direitos homogêneos tem por característica principal o fato de ser genérica (art. 95 do CDC).[3] Ou seja, ela concede aos reais beneficiários da tutela jurisdicional a faculdade de liquidar e executar o julgado em ação individual autônoma (art. 97 do CDC).[4] [5]
Na ação individual de liquidação da sentença coletiva, o suposto beneficiário apresenta os elementos, provas e teses para comprovar a conformidade com os termos genéricos da sentença e o seu direito de executar o título judicial. O processo de liquidação individual de sentença coletiva, portanto, não se resume a uma singela fase processual em que se realiza um mero cálculo aritmético para a direta execução da obrigação determinada na genérica sentença do art. 95 do CDC. Muito pelo contrário.
Em um Estado democrático de direito, é garantido ao réu o pleno exercício do seu direito constitucional à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal na ação de liquidação pelo procedimento comum. O réu terá a oportunidade de apresentar contestação e de produzir as provas previstas em lei que lhe garantam o inafastável exercício do contraditório, nos exatos termos dos arts. 509, II, e 511 do Código do Processo Civil (CPC):
Art. 509. Quando a sentença condenar ao pagamento de quantia ilíquida, proceder-se-á à sua liquidação, a requerimento do credor ou do devedor: (...)
II - pelo procedimento comum, quando houver necessidade de alegar e provar fato novo.
(...)
Art. 511. Na liquidação pelo procedimento comum, o juiz determinará a intimação do requerido, na pessoa de seu advogado ou da sociedade de advogados a que estiver vinculado, para, querendo, apresentar contestação no prazo de 15 (quinze) dias, observando-se, a seguir, no que couber, o disposto no Livro I da Parte Especial deste Código
Trata-se de um verdadeiro processo de conhecimento – com cognição ampla e exauriente –,[6] no qual devem ser verificados e analisados todos os fatos, alegações e documentos que possam efetivamente legitimar e justificar a própria pretensão da parte autora (isto é, fatos novos). Também nessa ocasião será analisada a adequação do pedido aos limites objetivos do título judicial coletivo e todos os obstáculos, objeções, impugnações e defesas suscitados pelo réu.
É o que garante o STJ e os ensinamentos doutrinários, destacando a necessidade de amplo conhecimento durante a liquidação individual de sentença coletiva para verificação do crédito pretendido pelo suposto legitimado, sob pena de violação das garantias constitucionais do réu:
“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. EXECUÇÃO INDIVIDUAL DE SENTENÇA COLETIVA. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. NECESSIDADE DE PRÉVIA LIQUIDAÇÃO. 1. A condenação oriunda da sentença coletiva é certa e precisa — haja vista que a certeza é condição essencial do julgamento e o comando da sentença estabelece claramente os direitos e as obrigações que possibilitam a sua execução —, porém não se reveste da liquidez necessária ao cumprimento espontâneo da decisão, devendo ainda ser apurados em liquidação os destinatários (cui debeatur) e a extensão da reparação (quantum debeatur). Somente nesse momento é que se dará, portanto, a individualização da parcela que tocará ao exequente segundo o comando sentencial proferido na ação coletiva. 2. O cumprimento da sentença genérica que condena ao pagamento de expurgos em caderneta de poupança deve ser precedido pela fase de liquidação por procedimento comum, que vai completar a atividade cognitiva parcial da ação coletiva mediante a comprovação de fatos novos determinantes do sujeito ativo da relação de direito material, assim também do valor da prestação devida, assegurando-se a oportunidade de ampla defesa e contraditório pleno ao executado.” (STJ, Emb Div no REsp nº 1.705.018/DF, rel. min. Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, j. 09.12.2020)”[7]
“Afirmam Nelson Nery e Rosa Nery que a liquidação é uma ação de conhecimento de natureza constitutivo-integrativa. Luiz Rodrigues Wambier também entende que a liquidação é uma nova ação, embora movida no mesmo processo. Segundo Araken de Assis, há cumulação sucessiva de pretensões in simultaneo processu, no que tange ao provimento originário do processo. Considerando a finalidade da liquidação, pode-se afirmar que ela tem natureza de ação, assim como a reconvenção, aproveitando a mesma base procedimental do processo que gerou a sentença condenatória. (...) A liquidação pelo procedimento comum comporta ampla defesa por parte do réu, sendo possível a realização dos diversos meios de prova em direito admitidos ou seja, conforme afirma Araken de Assis, ‘tudo quando se admita no rito comum do processo de conhecimento assume imediata pertinência (intervenção de terceiros, meios de prova, reconvenção etc.)’ (...) Sendo necessária a produção de provas, elas serão produzidas, designando-se, se for o caso, audiência de instrução e julgamento. Todas as provas, em tese são admissíveis, conforme art. 369 do CPC.”[8]
Nos embargos de divergência no REsp nº 1.705.018/DF, a maioria da 2ª Seção do STJ destacou a necessidade de distribuir ações de liquidação pelo procedimento comum, exatamente para evitar situações em que o suposto beneficiário se declare detentor de um crédito, embora não apresente qualquer prova nesse sentido. A fase de conhecimento é essencial para garantir a efetividade da sentença genérica e direcioná-la a quem realmente tem direito, como o trecho do voto do ministro Luis Felipe Salomão deixa claro:
“É espantosa a possibilidade de ajuizamento direto de execução individual da sentença coletiva por pessoas que não comprovam sua condição de titular do crédito exequendo, nem sequer instruem o processo com documentos hábeis a respaldar a discriminação de cálculo apresentada com vistas à aferição do valor devido.”
Não há dúvidas de que a sentença condenatória em ação civil pública constitui título executivo judicial. No entanto, apesar de tal sentença não ser passível de modificação nos autos do processo de liquidação (art. 509, §4º, do CPC), há ainda a necessidade de instauração do contraditório, sob pena de supressão de direitos e garantias básicas do processo civil.
Não pode o órgão julgador desconsiderar a sentença coletiva e simplesmente relegar a nova fase de conhecimento ao momento da distribuição da ação de liquidação de sentença, quando, realmente, novos fatos devem ser analisados.
[1] MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; e MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013 p. 1552
[2] TUCCI, José Rogério Cruz e. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 313/314.
[3] CDC: Art. 95. Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica, fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados.
[4] CDC: Art. 97. A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82.
[5] “Entre as hipóteses de sentença genérica prevista em nosso ordenamento está a que julga a ação coletiva para a defesa de direitos individuais homogêneos (Lei 8.078/1990, art. 95). Nela, como se viu, a cognição é limitada ao núcleo de homogeneidade dos direitos subjetivos postos na demanda. Não há, ali, a determinação do valor da prestação devida nem a identificação dos sujeitos ativos da relação de direito material, o que deixa em alto grau de indefinição a norma jurídica concreta. A sentença genérica, por isso mesmo, não tem eficácia executiva. Para alcançá-la, terá de ser complementada por outra, da qual resultem identificados os elementos faltantes da norma jurídica individualizada. Essa atividade de complementação se dá em fase processual autônoma, denominada, em geral, de liquidação de sentença. No que se refere à sentença genérica da ação coletiva, à sua liquidação se atribui também o nome de ação de cumprimento. É ação de natureza eminentemente cognitiva, destinada a definir o valor da prestação a ser executada, ou o seu objeto ou o titular do direito, formando, desse modo, integrada à sentença anterior, o título que habilita o credor à tutela executiva.” (Zavascki, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, 7. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. P. 186)
[6] “Aqui, cada liquidante, no processo de liquidação, deverá provar, em contraditório pleno e com cognição exauriente, a existência do seu dano pessoal e o nexo etiológico com o dano globalmente causado (ou seja, o an), além de quantificá-lo (ou seja, o quantum).” (GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; NERY JUNIOR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Vol. II. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011, p. 154)”
[7] Ver também: “A execução individual de sentença coletiva não pode ser considerada mera fase do processo anterior, porquanto uma nova relação jurídica processual se estabelece, a exemplo do que ocorre com a execução de sentenças estrangeiras, arbitrais ou penais. Assim, é necessária a citação do executado, nos termos do art. 475-N, aplicável à espécie por extensão” (STJ, REsp nº 1.091.044/PR, rel. min. Nancy Andrighi, 3ª T., j. 17.11.2011).
[8] PIZZOL, Patricia Miranda. Tutela Coletiva: processo coletivo e técnicas de padronização das decisões. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, pp. 454-457. Ver também: “Durante o processo coletivo não são examinados os aspectos probatórios de situações específicas e individuais dos poupadores, pois os documentos que comprovam a titularidade do crédito só são juntados na fase de execução (cumprimento) da sentença. Por essa razão, nas execuções individuais de sentença proferida em ações coletivas é patente a necessidade de se promover a liquidação do valor pago e a individualização do crédito, com a demonstração da titularidade do direito do exequente. Isso porque a sentença de procedência em ação coletiva tem caráter genérico, cujo cumprimento, relativamente a cada um dos titulares individuais, pressupõe a adequação da condição do exequente à situação jurídica nela estabelecida.” (Demócrito Reinaldo Filho, Cuidados em execuções individuais de sentenças coletivas sobre expurgos. Consultor Jurídico, 08.02.2015).