Eduardo Perazza, Débora Chaves Martines Fernandes, Bruna Godoy Marques das Neves, Danielle Siebra Pereira

A litigância predatória é um conceito com muitos nomes e, ainda, sem uma definição clara. De forma sintética, a litigância vexatória, litigância opressiva ou, na expressão do direito norte-americano, sham litigation, é o comportamento daquele que, valendo-se se seu legítimo direito de ação e de acesso à Justiça, faz uso abusivo dele para dificultar que terceiros exerçam seus direitos, e não (ou não apenas) com o objetivo de resguardar seu próprio direito.

Inicialmente desenvolvido pela doutrina e pela jurisprudência norte-americanas segundo a lógica do direito concorrencial, a litigância predatória começou a ser mapeada e definida em ações ajuizadas sem fundamentos e com a intenção de prejudicar os negócios de concorrentes. Os critérios adotados pela jurisprudência norte-americana para detectar esse tipo de abuso de direito são, principalmente:

  • a propositura de demandas sem fundamentos jurídicos;
  • o ajuizamento de ações com intenção de prejudicar concorrentes (finalidades anticompetitivas); e
  • a identificação de um padrão de conduta do autor que litiga de forma predatória – já que a análise de uma demanda isolada pode não deixar entrever o caráter anticompetitivo de uma estratégia de litigância.[1]

Os dois primeiros pontos são chamados de teste PRE[2] e o último de teste Posco.[3] e [4]

Oriundo do ambiente do direito concorrencial, o conceito de litigância predatória foi inicialmente empregado no Brasil em decisões administrativas do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que primeiro apontou o abuso do direito processual com fins anticompetitivos no julgamento do caso Sinpetro em 2004[5]. Desde então, a autarquia vem aplicando os critérios estabelecidos pela jurisprudência norte-americana, devidamente formatados para o panorama jurídico brasileiro, para analisar esse tipo de conduta – como no caso Sindicato das Empresas de Transportes de Carga de São Paulo e Região versus Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (PA 08700.009588/2013-04).[6]

Embora a origem do conceito e a sua primeira aplicação em território nacional tenha se dado no contexto do direito concorrencial, o abuso dessa prerrogativa pode ocorrer em outras áreas, pois o direito de ação é garantido constitucionalmente a todos (artigo 5º, XXXV da Constituição Federal) nas mais diversas situações de violação ou ameaça a direito. No Brasil, o conceito de litigância predatória foi se desvencilhando da prática processual abusiva direcionada contra concorrentes, sob a perspectiva concorrencial, e passou a ser adotado em outras situações, devido à amplitude do direito de ação no sistema jurídico brasileiro e à ausência de mecanismos claros para controlar o seu abuso.

Os tribunais brasileiros começaram a se deparar com práticas como:

  • o ajuizamento de numerosas ações com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, em comarcas diversas, com o intuito de dificultar a defesa do réu e/ou constituir ameaça à liberdade de expressão – consolidada, por exemplo, no massivo ajuizamento de demandas contra jornalistas, com finalidade de intimidação;[7]
  • a propositura de ações com pedidos fracionados, que poderiam ser reunidos em uma só demanda, com o intuito de multiplicar o pagamento de honorários[8] (advocacia predatória); e
  • o manejo de ações para dificultar o cumprimento de ordens judiciais e que terceiros gozem de seus direitos, entre outras formas de abuso.

Como as possibilidades de abuso de direito – entre eles o direito de ação – são tão numerosas quanto a criatividade humana permite, a moldura jurisprudencial e, até mesmo, a legislativa devem ser redesenhadas com contornos mais gerais, para evitar que fraudes processuais dessa natureza encontrem espaço para se desenvolver.

Foi exatamente nesse sentido que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) caminhou ao julgar o Recurso Especial 1.817.845/MS,[9] em acórdão relatado pela ministra Nancy Andrighi. Em sua decisão, a corte reconheceu o abuso de direito processual cometido por pessoas físicas que, desde o início da década de 1980, ajuizaram quatro ações judiciais e um processo administrativo para impedir o cumprimento de ordem judicial e a fruição do direito de propriedade por terceiros, que ajuizaram ação buscando indenização por danos morais e materiais resultantes da conduta ilícita praticada pela via processual. Ao julgar o caso, a ministra relatora definiu a seguinte tese para reconhecer a responsabilidade por danos decorrentes do abuso de direito processual: “O ajuizamento de sucessivas ações judiciais, desprovidas de fundamentação idônea e intentadas com propósito doloso, pode configurar ato ilícito de abuso do direito de ação ou de defesa, o denominado assédio processual”.

Embora a decisão pareça simples e direta – e não particularmente inovadora em relação aos critérios de aferição da litigância predatória (ou assédio processual, como definiu a ministra Nancy Andrighi) – sua importância é fundamental. Ao considerar a litigância predatória como ato ilícito (artigo 187 do Código Civil), resta inequívoco o dever de indenizar a parte pelos danos materiais e morais resultantes, em valores que promovam a efetiva reparação e não limitados às penalidades impostas à litigância de má-fé. O raciocínio que associa o assédio processual à litigância de má-fé foi desenvolvido pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino, no voto que divergiu do entendimento da maioria no julgamento desse recurso. Para o ministro, o abuso processual seria apurado unicamente no processo em que é praticado, e não a partir de uma visão macro de várias lides.

Em paralelo ao reconhecimento da litigância predatória como ato ilícito pelo STJ, tramitam dois projetos de lei sobre o tema, o PL 90/21 e o PL 3.818/20. Este último visa caracterizar como infração à ordem econômica o ato de exercer o direito de petição ou de ação de forma anticompetitiva, independentemente da apuração de culpa. Já o PL 90/21 propõe mecanismos processuais que permitam à vítima de litigância predatória requerer a reunião dos processos (com a mesma causa de pedir) ajuizados contra ela de forma abusiva, para julgamento conjunto. A medida visa assegurar o exercício integral do contraditório e da ampla defesa (artigo 2º). Esse mesmo PL, além de apontar técnicas para corrigir as distorções do abuso de direito de ação, estabelece o dever de reparação dos danos causados pela litigância opressiva (artigo 1º, §1º e artigo 5º), além de prever a condenação do autor de demandas dessa natureza em custas e honorários advocatícios – mesmo em ações ajuizadas em juizados especiais cíveis.

Em seus esforços contra o abuso de direito processual, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também recomendou que os tribunais brasileiros adotassem medidas para coibir a judicialização predatória, prática capaz de cercear a defesa e limitar a liberdade de expressão. De autoria do ministro Luiz Fux, o Ato Normativo 0000092-36.2022.2.00.0000 – aprovado no dia 08 de fevereiro deste ano – classifica como judicialização predatória o ajuizamento em massa de ações no território nacional com pedido e causa semelhantes contra uma pessoa ou um grupo específico de pessoas, a fim de inibir a plena liberdade de expressão.

O CNJ orienta os tribunais a adotar medidas destinadas a agilizar a análise da ocorrência de prevenção, da conexão entre ações e de eventual má-fé dos demandantes – entre outros elementos que permitam a ampla defesa do réu – em termos análogos aos propostos no PL 90/21, que é citado pelo ministro Fux ao justificar a recomendação. Os casos que precederam a manifestação do CNJ foram apresentados no âmbito do Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário, com fundamento em denúncia apresentada pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) sobre o ajuizamento de ações em todo o Brasil contra um jornalista devido a publicações na rede social Twitter.

A repressão à litigância predatória é fundamental para garantir a boa-fé objetiva no processo civil. Ao expurgar comportamentos fraudulentos, busca-se reforçar a higidez de todo o sistema processual brasileiro. Além disso, do ponto de vista gerencial, a maior vigilância judicial sobre o abuso do direito de ação é altamente desejável em um ambiente de litigiosidade massiva como o que atualmente assola nossos tribunais[10] e dá aos juízes ferramentas para rechaçar pleitos frívolos – e punir adequadamente seus autores. Assim, os magistrados poderão se concentrar em demandas que efetivamente necessitam da prestação jurisdicional.

A preocupação com o acesso à Justiça deve seguir permeando todas as iniciativas que, de alguma forma, impõem filtros ao direito de ação. A preocupação do Legislativo e do Judiciário em coibir a litigância predatória de maneira firme, estruturada e conjunta é positiva e relevante. O objetivo último é qualificar o acesso às cortes e afastar os pleitos frívolos, que restringem o exercício de direitos fundamentais de dimensão processual – como o contraditório e a ampla defesa – e material – como de propriedade e de livre expressão.

 


[1] CARVALHO, Angela Prata. “O abuso de direito de ação no processo civil brasileiro – contornos teóricos e práticos do assédio processual a partir da análise do recurso especial 1.817.845”. Revista de Processo, Vol. 319 p.339-357, Editora Revista dos Tribunais, 2021. p. 9.

[2] Real Estate Investors Inc. x Columbia Pictures Industries Inc.

[3] USS-Posco Industries x Costa County Building.

[4] Os “testes”, próprios do sistema de common law, são parâmetros uniformizados pela jurisprudência para identificar condutas análogas e relacionar o caso concreto à hipótese já julgada, em consonância com os precedentes de determinado tribunal.

[5] Caso em que o Cade observou e considerou ilegal a ação coordenada de postos de gasolina da cidade de Brasília para tentar evitar que o grupo Carrefour passasse a operar postos de gasolina. Essa decisão do Cade foi, posteriormente, reformada pela Justiça Federal (TRF1) e a prática dos postos de gasolina foi considerada legítima.

[6] Em suma, os principais requisitos adotados pelo Cade para caracterizar a litigância predatória são (i) ajuizamento de processos sem fundamento – com intuito e resultado anticompetitivo; (ii) ajuizamento de ações contra concorrentes com baixa probabilidade de provimento favorável – gerando efeitos anticompetitivos no mercado; (iii) falsidade apresentada ao Poder Judiciário ou a algum agente administrativo com o intuito de obter provimento estatal; e (iv) acordo judicial ou outras ações que visem causar práticas anticompetitivas.

[7] Sobre o tema, ver o mapeamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, disponível em https://www.abraji.org.br/entenda-o-que-e-assedio-judicial.

[8] Sobre o tema, os seguintes julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo: Apelação Cível 1010920 05.2021.8.26.0576, des. rel. Maurício Campos da Silva Velho; Agravo de Instrumento 2005467-91.2021.8.26.0000, des. rel. Clara Maria Araújo Xavier.

[9] STJ, Resp 1.817.845, relatora para acórdão min. Nancy Andrighi, Terceira Turma j. 10.10.2019.

[10] Em dezembro de 2020, havia 75,4 milhões de processos pendentes, o que representa uma queda de 2,7%, ou 2,1 milhões de processos a menos, em relação a 2019, mas ainda é um número muito significativo (relatório Justiça em Números, Conselho Nacional de Justiça, 2021, disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/relatorio-justica-em-numeros2021-12.pdf, consultado em 11.02.2022).