No fim do ano passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) mudou seu entendimento sobre conflitos de competência apresentados por empresas em recuperação judicial que têm bens penhorados no âmbito de execuções fiscais para pagamento de tributos.

A corte passou a considerar que não deveriam ser sequer conhecidos os conflitos de competência nos casos em que o juízo da recuperação judicial ainda não tenha se manifestado sobre a constrição de bens determinada pelo juízo da execução fiscal. A mudança de entendimento ocorreu após a 2ª Seção do STJ julgar o Conflito de Competência 181.190/AC (CC 181.190). Até então, o tribunal acolhia e julgava todos os conflitos apresentados envolvendo os juízos de execuções fiscais e da recuperação judicial, mesmo que não houvesse um efetivo conflito entre tais juízos devido a decisões divergentes.

As empresas em recuperação judicial frequentemente alegavam conflitos de competência ao tomar ciência de decisões proferidas pelo juízo da execução fiscal que determinavam a penhora de seus bens, sem que houvesse um pronunciamento prévio e em sentido contrário do juízo da recuperação judicial. Argumentava-se que o juízo da recuperação judicial era o “juízo universal” que deveria decidir sobre toda e qualquer questão correlata aos bens da empresa devedora.

De acordo com o novo posicionamento, para conhecimento e apreciação de conflito de competência entre o juízo da recuperação judicial e o juízo da execução fiscal em caso de atos constritivos de bens essenciais de uma empresa em recuperação judicial, é necessário haver, de fato, decisões conflitantes proferidas pelos juízos.

De acordo com o relator do CC 181.190, ministro relator Marco Aurélio Belizze, a razão pela qual tantas empresas alegavam conflito de competência antes mesmo de qualquer pronunciamento do juízo da recuperação judicial era a falta de clareza sobre a delimitação de competência do juízo da execução fiscal e do juízo da recuperação judicial, tema que não era tratado de forma clara pela Lei de Recuperação e Falência (LRF).

Para o ministro relator, entretanto, a alteração promovida pela Lei 14.112/20 que incluiu o § 7-B no artigo 6º da LRF parece esclarecer a questão. A mudança estabelece, de um lado, a competência do juízo da execução fiscal para determinar a penhora sobre os bens da empresa devedora e, de outro, resguarda a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre os bens essenciais da empresa.

A Lei 14.112/20, porém, segundo frisa o ministro relator em seu voto, não detalha como essas competências se concretizam na prática, e é justamente papel do STJ dar um direcionamento para que o conflito de competência para de ser utilizado indevidamente como um subterfúgio para as empresas em crise suspenderem as execuções fiscais.

Diante dessa situação, o ministro relator determinou que o juízo da execução fiscal pode comunicar o teor da decisão sobre a constrição de bens diretamente ao juízo da recuperação judicial, para que se tenha o controle dos bens considerados essenciais à penhora. A medida atende ao princípio da cooperação previsto no artigo 69 do Código de Processo Civil (CPC).

Assim, como bem destacado no voto, para que seja possível instaurar o conflito de competência em situações como a tratada no julgado, é necessário que o juízo da execução fiscal tenha proferido decisão que se oponha expressamente ao decidido pelo juízo da recuperação judicial a respeito do tema.

A importância da decisão do STJ é indiscutível, pois, além de guiar o comportamento de empresas em recuperação judicial com execuções fiscais em andamento, orienta os juízos a atuar de forma cooperativa, evitando-se assim a instauração de conflitos de competência desnecessários, que só sobrecarregam o sistema judiciário.

Uma pesquisa no site do STJ indicou que, desde 2005 (ano em que a LRF entrou em vigor), já foram julgados mais de sete mil conflitos envolvendo juízos de recuperação judicial e de execução fiscal.

Após o julgamento do CC 181.190, já foram proferidas diversas decisões monocráticas e acórdãos negando conhecimento aos conflitos suscitados, quando verificada a ausência de oposição do juízo da execução fiscal à determinação do juízo da recuperação judicial sobre a liberação da constrição de bem essencial ou substituição da constrição para outro bem.

O ministro Marco Buzzi, ao julgar em 24 de fevereiro deste ano o conflito de competência 186.196/RJ (CC 181.196), esclareceu de forma clara que:

“(...) para a configuração do conflito de competência perante esta Corte de Justiça, é necessário demonstrar: i) a efetiva determinação de ato constritivo exarado pelo r. Juízo Fiscal em detrimento do patrimônio da recuperanda; ii) decisão do Juízo da recuperação judicial exercendo o respectivo exame de controle (manutenção e/ou substituição) sobre o ato constritivo exarado pelo r. Juízo Fiscal valendo-se da cooperação judicial preconizada no art. 69 do CPC/2015; iii) deliberação do Juízo da execução fiscal se opondo, concretamente, à deliberação do Juízo da recuperação judicial a respeito da constrição judicial”.

A ideia de cooperação entre os diferentes juízos já vem, inclusive, sendo aplicada pelos tribunais do país. Na recuperação judicial do Grupo Oi, em 13 de setembro do ano passado, por exemplo, o juízo da recuperação judicial criou um mecanismo para evitar a prolação de decisões conflitantes e reduzir o número de consultas que lhe são endereçadas rotineiramente sobre atos constritivos originados de execuções fiscais.

Com base no princípio da cooperação, determinou-se o envio de um aviso a todos os juízos dos tribunais regionais federais e tribunais de Justiça estaduais sobre o mecanismo criado, que permite de antemão a penhora em determinadas contas do Grupo Oi para créditos de até R$ 20 mil. Créditos acima desse valor poderão ser satisfeitos mediante a penhora dos bens que não estão indicados no plano de recuperação do grupo em recuperação judicial.

Entretanto, mesmo após a criação desse mecanismo, constatou-se que foi necessário instaurar conflitos de competência (no total, identificamos quatro), considerando que os juízos das execuções fiscais não estavam observando a sistemática criada pelo juízo da recuperação judicial do Grupo Oi.

Os primeiros dois conflitos de competência[1] foram apreciados antes do julgamento do CC 181.190, de modo que ambos foram conhecidos. No CC 184.077/RJ, houve deferimento do pedido liminar para sobrestamento das medidas constritivas determinadas pelos juízos da execução fiscal, enquanto no CC 183.507/RJ houve decisão monocrática de mérito reconhecendo a competência do juízo da recuperação judicial, já tendo a decisão transitada em julgado.

Os outros dois conflitos de competência[2] identificados foram apreciados após o julgamento do CC 181.190, e ambos não foram conhecidos, pois se considerou que não apresentavam os requisitos expostos no acórdão – a decisão do juízo de recuperação judicial exercendo o controle e a posterior decisão do juízo da execução fiscal negando cumprimento ao controle.

Em um desses dois últimos casos, o CC 186.196, foram opostos embargos de declaração diante da decisão de não reconhecer o referido conflito, esclarecendo que:

  • já havia decisão do juízo da recuperação judicial determinando a substituição de toda e qualquer penhora que recaia sobre o Grupo Oi em valor superior a R$ 20mil; e
  • o juízo da execução fiscal já tinha ciência desta decisão.

Foi, portanto, observada a sistemática prevista pelo STJ no julgamento do CC 181.190. Atualmente, aguarda-se uma decisão sobre os embargos de declaração opostos no âmbito do CC 186.196, os quais, no nosso entender, devem prevalecer diante do conflito expresso na oposição do juízo da execução fiscal em acatar a ordem do juízo da recuperação judicial.

Espera-se que com a decisão do CC 181.190 outros juízos de recuperação judicial usem sua criatividade, buscando soluções e mecanismos que efetivamente põem em prática a cooperação jurisdicional e ajudem a desafogar o sistema judiciário. Mas é necessário que o próprio STJ também amadureça seu entendimento, desapegando de formalismos excessivos, sob pena de inviabilizar até mesmo o acesso à Justiça.  

 


[1] Conflito de competência 183.507/RJ (CC 183.507), distribuído em 13.10.2021, de relatoria do ministro Marco Buzzi; e Conflito de competência 184.077/RJ (CC 184.077), distribuído em 3.11.2021, de relatoria do ministro Marco Buzzi.

[2] Conflito de competência 185.176/RJ (CC 185.176), de relatoria do ministro Marco Buzzi, julgado em 17.12.2021; e CC 186.196.