Com a extinção de tantas companhias aéreas no país ao longo dos últimos 20 anos, é essencial fazer uma análise dos fatores que levariam essas empresas a falir, uma atrás da outra, sem conseguir se recuperar financeiramente para continuar operando no mercado.
A TransBrasil, em 2002, a Viação Aérea de São Paulo (Vasp), em 2008, e a Viação Aérea Rio Grandense (Varig), em 2010, são exemplos de grandes companhias áreas que tiveram sua falência decretada. Todas solicitaram o processamento de pedido de recuperação judicial, que acabou sendo depois convolado em falência. Em 2007, a BRA Transportes Aéreos também requereu o processamento de sua recuperação judicial e depois suspendeu definitivamente todos os seus voos e alienou suas aeronaves.
O caso mais atual desse tipo é o da Oceanair Linhas Aéreas, conhecida como Avianca Brasil, que requereu o processamento de pedido de recuperação judicial em dezembro de 2018 e, desde então, enfrenta graves dificuldades financeiras que deixam dúvidas sobre a sua efetiva capacidade de continuar operando no mercado. São aspectos preocupantes o expressivo número de funcionários demitidos, o alto endividamento, a retomada, pelos arrendadores, da maioria das aeronaves da empresa e a existência incerta de ativos, ainda mais depois da redistribuição de seus slots (reservas de horários de voos e decolagens em aeroportos) pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).
É inegável que o alto custo operacional é um fator relevante para as dificuldades que as companhias aéreas enfrentam. Para compor sua frota, por exemplo, elas precisam adquirir ou arrendar aeronaves que, além de caras, estão sujeitas à variação cambial e têm custo alto de manutenção. Como agravante, ainda sofrem com a alta competitividade no mercado de aviação civil, traduzida em guerra de preços de passagens aéreas.
Esses fatores, no entanto, não são os únicos por trás das dificuldades financeiras enfrentadas pelas companhias aéreas. Para entender mais profundamente o problema, é preciso analisar de perto as questões jurídicas envolvendo o assunto.
Quando o processamento da recuperação judicial de uma empresa é deferido, todas as ações e execuções existentes em face do devedor são suspensas pelo prazo de 180 dias (artigo 6º, §4º, da Lei de Recuperação Judicial e Falência - LRF). Durante esse período, é proibido retirar do estabelecimento do devedor os “bens de capital essenciais a sua atividade empresarial” (artigo 49, §3º, da LRF).
Na recuperação judicial de companhias aéreas, no entanto, a LRF estabelece uma exceção relevante: as aeronaves que forem objeto de arrendamento poderão ser reintegradas a qualquer momento pelos arrendadores, que são os seus efetivos proprietários, na hipótese de inadimplemento da contraprestação devida pelo uso das aeronaves. Ou seja, os arrendadores não têm seus direitos suspensos (artigo 199, §1º, da LRF), ainda que as aeronaves sejam notoriamente os bens mais essenciais às atividades das companhias aéreas.
Embora pareça contraditório, não existe qualquer antinomia ou conflito entre as normas. Na verdade, a LRF estabeleceu uma hipótese específica e peculiar em que a intenção do legislador foi afastar as companhias aéreas absolutamente inviáveis do instituto da recuperação judicial – aquelas que, além de não dispor de mínimas condições para adquirir aeronaves próprias para compor sua frota, nem sequer têm capacidade financeira para manter em dia os pagamentos devidos a título de contraprestação pelo arrendamento de aeronaves.
Tal discussão surgiu este ano no âmbito da recuperação judicial da Avianca Brasil. O juiz de primeira instância optou por mitigar a exceção expressamente prevista no artigo 199 da LRF, que confere ao arrendador o direito de retomada imediata das aeronaves na hipótese de inadimplemento do contrato de arrendamento, em razão do princípio da preservação da empresa e da função social dos contratos. Após vários meses de suspensão dos direitos dos arrendadores, porém, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) restabeleceu a aplicação da exceção prevista na LRF, permitindo a imediata reintegração de posse das aeronaves, independentemente do impacto que tal medida traria à Avianca Brasil. A decisão se baseou na premissa de que, se empresa não possui recursos para continuar cumprindo regularmente os contratos de arrendamento, a manutenção de suas atividades comerciais já não seria mais viável.
No caso em questão, além de não poderem reintegrar suas aeronaves por diversos meses, os arrendadores tiveram que permitir o uso de seus ativos pela Avianca Brasil sem qualquer contraprestação.
A situação preocupou os arrendadores e o mercado internacional de aviação, pois disseminou o receio de que, no Brasil, as companhias aéreas poderiam se valer do instituto da recuperação judicial como meio de transferir os riscos de suas atividades comerciais aos arrendadores de aeronaves. Isso encareceria os custos e encargos decorrentes dos contratos de arrendamento no Brasil e traria consequências negativas para as demais companhias aéreas brasileiras e para os consumidores, aos quais parte desses custos é repassada.
O caso da Avianca Brasil teve repercussão ainda na comunidade jurídica internacional, por representar também a violação da Convenção da Cidade do Cabo pelo Brasil. Ao formalizar sua adesão a esse tratado, o país promulgou o Decreto nº 8.008/13, nos termos do qual optou pela “Alternativa A” prevista na convenção. Segundo essa alternativa (artigo XI(2) do tratado), em um cenário de insolvência, a companhia aérea é obrigada a devolver as aeronaves objeto de contratos de arrendamento inadimplidos no prazo máximo de 30 dias. Como o caso da Avianca Brasil representou a primeira recuperação judicial de companhia aérea após a adesão do Brasil à Convenção da Cidade do Cabo, a repercussão foi negativa, e o Poder Judiciário brasileiro foi visto como descumpridor de tratados internacionais.
Após a devolução das aeronaves aos arrendadores e a redistribuição dos slots da Avianca Brasil pela Anac, as dificuldades financeiras da empresa se agravaram. Com a suspensão das atividades comerciais e a inexistência de bens relevantes que pudessem assegurar a continuidade das operações, o TJ-SP cogitou então convocar a recuperação judicial em falência, ainda que o plano de recuperação judicial tivesse sido aprovado pelos credores. Contudo, por maioria de votos, o TJ-SP entendeu que a convolação, de ofício, da recuperação judicial em falência era impossível, tendo em vista a ausência de requerimento expresso nesse sentido por parte dos arrendadores, que haviam apenas impugnado a legalidade do plano de recuperação judicial apresentado pela Avianca Brasil (Agravo de instrumento nº 2095938-27.2019.8.26.0000 interposto por Swissport Brasil Ltda. e Agravo de instrumento nº 2098259-35.2019.8.26.0000 interposto por Petrobras Distribuidora S/A).
O caso reforça a ideia de que, uma vez determinada a devolução das aeronaves para os arrendadores, dificilmente as companhias aéreas conseguem se reerguer. As alternativas disponíveis são apenas a convolação da recuperação judicial em falência ou o encerramento das atividades comerciais. Isso se deve, sobretudo, ao fato de que as companhias aéreas têm requerido tardiamente o processamento de recuperação judicial, somente quando já estão em situação financeira dramática e insustentável, na qual não há mais possibilidade de retomada das atividades comerciais e a insolvência é irreversível, em razão do alto grau de endividamento.