As chuvas intensas que atingiram o Rio Grande do Sul (RS) entre o final de abril e início de maio deste ano provocaram enchentes devastadoras, com danos extensos à população gaúcha e consequências que aparentam estar longe do fim. Mesmo após alguns meses, ainda não é possível dimensionar com precisão a extensão dos danos.

Uma pesquisa realizada pelo Sebrae/RS em parceria com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico (Sedec) revelou, por exemplo, que 35,71% dos negócios ainda estão fora de operação e que outros 25,15% estão parcialmente paralisados.

A catástrofe repercute nas mais diversas áreas do direito, como cível, trabalhista, tributário, seguros, imobiliário, ambiental e infraestrutura e contratos com a Administração Pública, entre outras.

No contexto do direito civil, não foram implementadas regras específicas para esse período excepcional, como ocorreu na pandemia de covid-19, por exemplo, com a edição do regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado (Lei 14.010/20).

Diante dessa ausência de regramento específico, este artigo busca tratar dos efeitos da tragédia no Rio Grande do Sul na responsabilidade civil.

A matéria aqui abordada é uma reflexão oportuna diante da grande quantidade de contratos que estão impossibilitados de serem cumpridos (danos contratuais) e dos casos de proprietários de bens que sofreram danos decorrentes da tragédia (danos extracontratuais). Essas situações podem ter origem, respectivamente, no descumprimento de uma obrigação contratual e na prática de um ato ilícito.

Situações de inadimplemento

Nas relações contratuais, o comportamento juridicamente esperado do devedor é o cumprimento daquilo que se obrigou com o credor. Há situações, porém, em que o devedor não cumpre a obrigação por ele assumida, o que configura o inadimplemento.

Esse inadimplemento, por sua vez, atrai consequências que variam de acordo com a natureza da obrigação, as circunstâncias do descumprimento e a espécie de inadimplemento (absoluto ou relativo).[1] Entre as possíveis repercussões estão o cumprimento forçado da obrigação, o pagamento de perdas e danos com juros, atualização monetária e honorários do advogado, além da possibilidade de resolução do contrato.

Há hipóteses, entretanto, em que o contexto obrigacional entre a data na qual o contrato foi celebrado e a data em que a obrigação se torna exigível diferem significativamente, como parece ser o caso de muitos contratos afetados pela tragédia no RS. Para esse cenário, há três possíveis situações em que se pode enquadrar a catástrofe no estado:

  • como evento de caso fortuito ou força maior, que impossibilita o cumprimento da obrigação pactuada;
  • como indutor de onerosidade excessiva a uma das partes do contrato; e
  • como fato gerador para reclamar exceção do contrato não cumprido.

Em relação ao primeiro cenário, o caso fortuito ou força maior refere-se ao fato necessário e imprevisível cujos efeitos não era possível evitar ou impedir. O caso fortuito tem origem natural, enquanto a força maior tem origem em ação humana, mas os efeitos jurídicos são os mesmos.

A tragédia climática no RS pode configurar caso fortuito que leva à inexecução involuntária da prestação, extinguindo-se a obrigação pela impossibilidade de seu cumprimento.

Entretanto, o devedor não pode se valer do instituto para extinguir a obrigação nas seguintes hipóteses:

  • caso o risco de eventos dessa natureza tenha sido alocado ao devedor expressamente no contrato;[2] ou
  • se a tragédia não tiver impossibilitado o cumprimento da obrigação assumida pelo devedor.

Sob a perspectiva da imprevisibilidade contratual (segundo cenário), o evento no RS poderia vir a ser qualificado como extraordinário e imprevisível, a ponto de tornar a obrigação excessivamente onerosa para uma das partes e extremamente vantajosa para a contraparte. Nessa hipótese, a parte prejudicada pode pedir a resolução ou revisão do contrato – revisão que também pode ser pretendida pela parte beneficiada, como alternativa à resolução.[3] O Código Civil apresenta, ainda, alternativa simplificada,[4] na qual a prestação pode ser reequilibrada judicialmente se o evento imprevisível tiver gerado desproporção.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já enfrentou situação análoga às chuvas e enchentes no RS em decorrência da pandemia de covid-19, em que se decidiu:

“...Nos contratos empresariais deve ser conferido especial prestígio aos princípios da liberdade contratual e do pacta sunt servanda, diretrizes positivadas no art. 421, caput, e 421-A do Código Civil, incluídas pela Lei nº 13.874/2019.4. Nada obstante, o próprio diploma legal consolidou hipóteses de revisão e resolução dos contratos (317, 478, 479 e 480 do CC). Com amparo doutrinário, verifica-se que o art. 317 configura cláusula geral de revisão da prestação contratual e que a interpretação sistêmica e teleológica dos arts. 478, 479 e 480 autorizam também a revisão judicial do pactuado.5. A Teoria da Imprevisão (art. 317 do CC), de matriz francesa, exige a comprovação dos seguintes requisitos: (I) obrigação a ser adimplida em momento posterior ao de sua origem; (II) superveniência de evento imprevisível; (III) que acarrete desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução. A pedido da parte, o juiz poderá corrigir o valor da prestação, de modo a assegurar, quanto possível, o seu valor real...” (STJ, REsp 2032878/GO, Terceira Turma, relatora ministra Nancy Andrighi, julgado em 18 de abril de 2023)

Entretanto, mais uma vez, a catástrofe climática no RS não pode ser apontada como fato gerador da excessiva onerosidade a todos os devedores vítimas do evento. É imprescindível que se comprove que a tragédia tenha sido a fonte da desproporção contratual (nexo de causalidade) e que de fato era, no mínimo, imprevisível – e extraordinário, se o pedido for para resolução ou revisão contratual.

Em contratos comutativos, mesmo se não configurada força maior ou imprevisão, pode se configurar terceiro cenário, em que o devedor tem motivo para alegar a exceção de contrato não cumprido, caso a contraparte que lhe imputa inadimplemento (ou exige o cumprimento da obrigação) não tenha arcado com suas obrigações contratuais anteriormente. Essa hipótese daria ao devedor o direito de se recusar a cumprir sua obrigação porque a contraparte (pretensa credora) não cumpriu a dela, de modo que pode servir de relevante defesa às imputações de inadimplemento. É preciso, porém, comprovar que a contraparte falhou no cumprimento de suas obrigações em primeiro lugar.

Vale mencionar que nem sempre essas figuras jurídicas que permitem ao devedor o não cumprimento da obrigação sem atrair para si as consequências do inadimplemento serão aplicáveis. Pode, por exemplo, haver cenários em que as chuvas e enchentes não interferiram nas obrigações pactuadas. É preciso avaliar no caso concreto se de fato o evento trágico impactou a contratação. No entanto, é certo que ao menos parte das contratações interrompidas ou parcialmente paralisadas, segundo a pesquisa do Sebrae/RS, jamais serão integralmente retomadas, pois a solução jurídica adequada é desobrigar as partes de suas obrigações (o que precisa ser avaliado caso a caso).

Responsabilidade civil extracontratual

A tragédia no RS repercute, ainda, na responsabilidade civil extracontratual, especialmente no que diz respeito à obrigação de indenizar por danos extracontratuais decorrentes de um evento climático e, se confirmada essa obrigação, quem figuraria como devedor.

A jurisprudência tem cada vez mais reconhecido que, apesar de decorrerem da natureza, os eventos climáticos configuram responsabilidade objetiva do ente estatal, uma vez que o Estado poderia agir para atenuar os danos por meio de medidas preventivas. Esse, inclusive, foi o entendimento do próprio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) em julgamento de incidente de uniformização jurisprudencial:

“INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. TURMAS RECURSAIS DA FAZENDA PÚBLICA REUNIDAS. RESPONSABILIDADE CIVIL, EM CASO DE OMISSÃO ESTATAL, POR DANOS DECORRENTES DE ALAGAMENTOS E INUNDAÇÕES. DIVERGÊNCIA ENTRE AS TURMAS FAZENDÁRIAS SOBRE SER OBJETIVA OU SUBJETIVA A RESPONSABILIDADE ESTATAL NA HIPÓTESE. ACOLHIMENTO DO INCIDENTE E UNIFORMIZAÇÃO DO ENTENDIMENTO, COM A EDIÇÃO DE ENUNCIADO NOS SEGUINTES TERMOS: "A RESPONSABILIDADE CIVIL ESTATAL, NOS CASOS DE OMISSÃO, GENÉRICA OU ESPECÍFICA, EM HIPÓTESE DE ALAGAMENTOS E INUNDAÇÕES, É OBJETIVA, RESSALVADA A PROVA, PELO ENTE PÚBLICO, DE ROMPIMENTO DO NEXO CAUSAL ENTRE A OMISSÃO E O DANO EXPERIMENTADO PELO PARTICULAR". INCIDENTE CONHECIDO E UNIFORMIZADO O ENTENDIMENTO, POR MAIORIA, COM EDIÇÃO DE ENUNCIADO. (TJRS, processo 71008591331, CNJ 0028774-83.2019.8.21.9000, Turmas Recursais da Fazenda Pública Reunidas, relatora Laura de Borba Maciel Fleck, julgado em 13 de março de 2020)”

O julgamento resultou na edição do Enunciado 23 da Súmula das Turmas Recursais da Fazenda Pública do TJRS, pelo qual se sedimentou que: “a responsabilidade civil estatal, nos casos de omissão, genérica ou específica, em hipótese de alagamentos e inundações, é objetiva, ressalvada a prova, pelo ente público, de rompimento do nexo causal entre a omissão e o dano experimentado pelo particular”.

O entendimento, nesse sentido, é que o ente estatal não só repare os danos provocados às vítimas, mas também implemente políticas públicas eficazes para prevenção de eventos futuros, cada vez mais frequentes.

Para que as vítimas sejam ressarcidas, é muito importante que documentem os prejuízos causados, por exemplo, por meio de registros fotográficos que demonstrem os bens perdidos, assim como comprovantes dos gastos para reestruturação do local afetado.

É preciso ressaltar, porém, que a responsabilidade objetiva do ente estatal sobre os efeitos da tragédia no RS não deve ser aplicada indistintamente aos danos suportados pelas vítimas. Isso porque a vítima precisa comprovar que, antes do evento, seu bem jurídico prejudicado estava em situação regular. Por exemplo, se a construção civil caiu depois da chuva, mas a obra não tinha alvará de construção pelo fato de o terreno ser impróprio ao empreendimento, a vítima não poderá se valer da tragédia para reclamar o ressarcimento do dano.

Poderá haver hipóteses, entretanto, em que a irregularidade é insuficiente ou irrelevante para afastar a responsabilidade do ente estatal. A ausência de alvará de funcionamento de um estabelecimento comercial, por exemplo, não necessariamente afastará todo e qualquer dano decorrente das chuvas e enchentes, na medida em que a edificação pode ter sido afetada independentemente da atividade ali exercida.

Análise caso a caso

A tragédia no RS, como se vê, atribui muitos efeitos à responsabilidade civil, mas deve-se ter cautela e analisar individualmente cada caso, para que o devedor não sofra as consequências legais do seu inadimplemento – na responsabilidade contratual – ou possa ser ressarcido – na responsabilidade extracontratual.

A cautela é especialmente importante quando se trata de evento que possa estar ligado às mudanças climáticas, como vêm sendo consideradas as chuvas e enchentes no RS. Isso ocorre porque essas mudanças climáticas decorrem de vários comportamentos e atividades humanas globais, o que dificulta o estabelecimento de nexo causal.

Soma-se a isso o consenso científico de que eventos climáticos extremos – como as chuvas e enchentes no RS – tendem a se tornar mais frequentes e intensos com o aumento da temperatura média global. Isso pode levar, no futuro, à inadequação das teorias jurídicas ligadas ao descumprimento de obrigações contratuais e de responsabilidade extracontratual e à consequente necessidade de revisitar a adequação dessas teorias para danos decorrentes de mudanças climáticas.

Até que isso ocorra, no entanto, um evento dessa magnitude pode ter muitas implicações jurídicas tanto no cenário contratual quanto no extracontratual. Ainda assim, nem todos os danos sofridos serão indenizáveis, e nem todos os causadores de danos poderão se valer desse evento para se eximir de responsabilidades. É preciso analisar detidamente cada caso.

 


[1] No caso de inadimplemento relativo (mora), a data da constituição em mora dependerá da existência ou não de termo (vencimento) e da natureza da dívida, se líquida ou ilíquida. Para as dívidas líquidas, positivas e sujeitas a termo, a data da constituição em mora se dá no vencimento. Para as dívidas sem vencimento ou ilíquidas, a constituição em mora será por meio de interpelação judicial ou extrajudicial (artigo 397, caput e parágrafo único, respectivamente).

[2] Art. 393 do Código Civil.

[3] Artigos 478 a 480 do Código Civil.

[4] Artigo 317 do Código Civil.