O clima de antagonismo vivenciado entre a administração tributária e o contribuinte favorece a manutenção de uma relação de conflito entre as duas partes. A construção de um novo paradigma pressupõe diminuir a desconfiança do contribuinte em relação ao poder público, assim como mudar a percepção da autoridade fiscal em relação ao contribuinte.[1]
Bastante conhecido pelos altos índices de litigiosidade, o contencioso fiscal reflete um sistema tributário complexo e burocrático, que deixa o contribuinte sujeito a penalidades e sanções.
Como efeito desse desequilíbrio, observa-se a ineficácia do sistema de resolução de conflitos, o que resulta em excessiva litigiosidade tributária no contencioso fiscal brasileiro. Estatísticas apontavam, já em 2019, um contencioso tributário (administrativo e judicial, nos três níveis federativos) que ultrapassava o patamar de R$ 5,44 trilhões – 75% do PIB nacional.
O emprego de medidas preventivas contra a litigiosidade tributária é uma tendência internacional, com destaque para a utilização de programas de transparência e conformidade tributária em prol de um relacionamento menos antagônico e baseados nos paradigmas da confiança e da colaboração. A cooperative compliance (conformidade fiscal cooperativa) consiste em cumprir a obrigação tributária principal (pagamento) por meio da cooperação recíproca entre administração fazendária e o contribuinte.[2]
A iniciativa de criar um diploma destinado à proteção do contribuinte já foi adotada em países como Estados Unidos (Taxpayer Bill of Rights II) e Espanha (Ley de Derechos y Garantias de los Contribuyentes), entre outros.
No início de 2022, o Brasil recebeu a carta-convite da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), com aprovação unânime pelos embaixadores dos 37 países que compõem o grupo, dando início ao processo de adesão à organização.
Além disso, o Brasil é membro do Fórum sobre Administração Tributária (FTA) da OCDE, cujo principal objetivo é aprimorar a atuação da administração tributária, a fim de torná-la mais eficiente e eficaz e aumentar a conformidade fiscal, com redução dos custos para os contribuintes e incentivo a um ambiente cooperativo baseado na confiança recíproca.
Na análise do atual sistema tributário nacional e dos dados relativos ao estoque de processos nos âmbitos administrativo e judicial, chamam a atenção a busca de formas alternativas de solução de controvérsias em matéria tributária e o estabelecimento de uma relação harmoniosa entre as partes que compõem a relação jurídico-tributária.
Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar 17/22 (PLP 17/22), de autoria do deputado Felipe Rigoni (União Brasil) em conjunto com outros 31 parlamentares. Ele propõe instituir o Código de Defesa do Contribuinte na legislação brasileira. O conteúdo apresenta um conjunto de regras, direitos e deveres para regular a interação entre contribuinte e Fazenda Pública e coibir abusos.
O texto original do PLP 17/22 estrutura-se em cinco capítulos:
- Das disposições preliminares e definições;
- Das normas fundamentais;
- Dos direitos do contribuinte;
- Das vedações e deveres da Fazenda Pública; e
- Das disposições finais.
O Código de Defesa do Contribuinte abre seu texto reconhecendo a assimetria entre contribuinte e Fazenda Pública e dispõe sobre normas fundamentais, como a proteção dos direitos do contribuinte, sobretudo ao contraditório e à ampla defesa, além da presunção da boa-fé do contribuinte na sua interação com a Fazenda.
Outro ponto importante trazido pelo projeto de lei é a indicação dos pressupostos e fundamentos de fato e direito que determinam as decisões em processos administrativos, sob pena de invalidez. Essa previsão é estabelecida como princípio a ser considerado pela Fazenda Pública em julgamento de processos sob sua competência, para trazer maior segurança jurídica ao contribuinte no decorrer de discussões administrativas.
Em relação aos direitos do contribuinte e dos procuradores que o representem, destacam-se a previsão de reparação de danos patrimoniais e morais de atos praticados por servidor público sem a estrita observância da legislação tributária e o impedimento de apreensão de bens como meio coercitivo para pagamento de tributos.
O PLP 17/22 também trata de assuntos antigos, mas em ampla discussão tanto no Judiciário como no administrativo fiscal até os dias de hoje. É o caso do efeito confiscatório da multa tributária, tema de repercussão geral pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal.[3]
Especificamente em seu artigo 11, inciso XVI, o projeto de lei prevê expressamente a vedação à aplicação de penalidade pecuniária confiscatória que ultrapasse o montante do tributo devido. A medida está em linha com um embate frequentemente travado no contencioso tributário envolvendo processos contra o fisco, que insiste em aplicar penalidades elevadíssimas por infrações, até mesmo para as não qualificadas como simulação, fraude ou conluio.
O diploma legal prevê proteção a atos confiscatórios que atinjam o patrimônio do contribuinte resultantes da atuação do fisco, como apresentado na justificação do projeto de lei:
“O que se pretende nestes artigos é a delimitação de diretrizes para imposição de tributos ao sujeito passivo, de acordo com a melhor jurisprudência e diretrizes fiscais. Considerando, também, os princípios da livre iniciativa e da Liberdade Empresarial, realçamos que a existência de processo judicial ou extrajudicial em face de contribuinte não impede a fruição de benefícios e incentivos fiscais e participação em licitações, ao entender que o sujeito passivo da relação tributária não pode ser privado do exercício de atividade econômica”.
Nesse contexto, a proposta legislativa contempla prerrogativas que visam facilitar o acesso do contribuinte à administração tributária, como o ingresso facilitado ao superior hierárquico da repartição fazendária onde seu caso estiver sendo analisado; dispensa de pagamento imediato de qualquer autuação, garantindo o imediato exercício de defesa; e tratamento adequado e eficaz na repartição fazendária.
O texto apresenta procedimentos que antecedem o início da autuação tributária, como a emissão prévia de notificação para início de procedimento fiscalizatório e a análise da defesa do contribuinte antes da autuação fiscal.
A proposta também apresenta mudanças para acabar com empecilhos regularmente enfrentados pelos contribuintes ao permitir a fruição de benefícios fiscais mesmo com a existência de processo tributário (administrativo ou judicial) pendente e a novação em caso de adesão a parcelamento tributário, conferindo ao contribuinte o estado de adimplência.
O projeto prevê outras medidas práticas que beneficiam o contribuinte, como a vedação da qualificação do contribuinte como responsável solidário por mera presunção e a configuração de desconsideração de personalidade jurídica somente mediante decisão judicial.
O texto altera, ainda, algumas regras previstas no Código Tributário Nacional, com a redução do atual período de prescrição da ação de cobrança de crédito tributário de cinco para três anos. O mesmo prazo de prescrição deverá ser considerado na fase executória de localização de bens do devedor.
Em relação à Fazenda Pública, o projeto estabelece diversas vedações, entre as quais o uso de força policial nas diligências no estabelecimento do contribuinte, salvo com autorização judicial. O texto também condiciona a propositura de ação penal contra o contribuinte pela prática de crime contra a ordem tributária e a ação de quebra de sigilo ao término de processo administrativo que comprove a irregularidade fiscal do contribuinte.
A proposta trazida pelo PLP 17/22 corrobora a necessidade de mudança na forma tradicional do fisco, caracterizada por um diálogo limitado com o contribuinte e a adoção de uma postura prioritária repressiva.
Os programas de conformidade fiscal amplamente adotados na experiência internacional evocam o aprofundamento do diálogo entre fisco e contribuintes, aumentando a segurança jurídica à medida que se promove a adequação voluntária à legislação tributária e se inverte a lógica do litígio.
No Brasil, estados como São Paulo, com o “Nos Conformes”; Ceará, com o “Contribuinte Pai D’Égua”; e Rio Grande do Sul, com o “Nos Conformes RS”, já apresentam programas de conformidade para estabelecer um ambiente de cooperação recíproca, destinando a orientar e atender os contribuintes e estimular a autorregularização de sua situação fiscal.
Medidas como o procedimento de revisão prévia de auto de infração são muito utilizadas na Espanha e recomendadas pela OCDE, demonstrando uma relação de confiança recíproca entre fisco e contribuinte. De acordo com o Diagnóstico do Contencioso Administrativo (2022),[4] alguns estados brasileiros já adotam essa mesma medida como procedimento para assegurar maior consistência jurídica ao auto. É o caso de Minas Gerais, que evita o ingresso no contencioso tributário de exigências fiscais sem condições de serem confirmadas pelos órgãos de julgamento.
Nessa mesma linha, a pesquisa destaca soluções adotadas como medidas preventivas do litígio tributário e abrange a experiência internacional em conformidade cooperativa como fatores para diminuir a litigiosidade tributária. Isso mostra que o viés exclusivamente punitivo (ou de ameaça de imposição de sanção) não tem se mostrado suficiente para aumentar a adesão dos contribuintes às normas tributárias vigentes, ocasionando conflitos que se traduzem em altos índices de contencioso fiscal.
A construção de um modelo de regulação fiscal cooperativa deve ser estudada e discutida para o direcionamento da atuação do Estado. O modelo deve ser estabelecido por meio da utilização de instrumentos regulatórios e de extrafiscalidade tributária, como o proposto no cenário internacional.
O Código de Defesa do Contribuinte pode ser um caminho, ainda que não o único, para a promoção do comportamento de compliance, especialmente no que se refere às possíveis formas de implementação de um modelo mais pautado na colaboração e confiança mútua entre a administração tributária e os contribuintes.
O PLP 17/22 está em tramitação aguardando votação do plenário da Câmara dos Deputados. Já houve audiência pública para discussão do projeto. Um substitutivo foi apresentado ao texto original, que aguarda aprovação.
[1] De acordo com o Diagnóstico do Contencioso Administrativo Tributário (2022), percepções trazidas por pesquisa qualitativa, baseada nas respostas dos administrados ou de seus representantes, apontam para a existência de uma desconfiança mútua no relacionamento entre o ente fazendário e os contribuintes . Há, portanto, oportunidade de se aperfeiçoar esse relacionamento, para construir um sistema mais preventivo que resolutivo de conflitos.
[2] Co-operative compliance: a framework: from enhanced relationship to co-operative compliance. Paris: OECD Publishing, p. 14, 2013
[3] O tema retornou à pauta do Supremo Tribunal Federal em fevereiro de 2022, quando foi reconhecida a repercussão geral no Recurso Extraordinário 1.335.293, que discutirá no mérito a possibilidade de fixação de multa tributária punitiva, não qualificada, em montante superior a 100% do tributo devido (Tema 1.195).
[4] Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ). Seminário de Diagnóstico do Contencioso Tributário Administrativo. Brasília, 2022. 55 p.