A Comissão Mista da Medida Provisória nº 899/19 aprovou, em 19 de fevereiro, o texto do projeto de lei de conversão da MP, que segue para votação na Câmara dos Deputados. A chamada MP do Contribuinte Legal foi publicada em 17 de outubro de 2019 com o objetivo de regulamentar a transação tributária, admitida pelo Código Tributário Nacional há mais de 50 anos. A medida visa reduzir o contencioso tributário e verter aos cofres públicos créditos tidos como irrecuperáveis ou de difícil recuperação.
O texto original da MP recebeu 220 emendas parlamentares e foi discutido em audiência pública realizada no último dia 13, com a presença de representantes do governo e contribuintes.
De acordo com o relatório aprovado pela comissão, a aprovação da MP atende aos pressupostos constitucionais de urgência e relevância, especialmente pelo fato de que a carteira de créditos em discussão judicial que poderá ser objeto de transação seria da ordem de R$ 1,4 trilhão, montante superior à metade do estoque da dívida ativa da União. Na esfera administrativa, R$ 600 bilhões estariam vinculados a cerca de 120 mil processos em tramitação no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
O elevado grau de litigiosidade entre os contribuintes e o fisco, associado ao significativo volume dos potenciais recursos a serem arrecadados, justificaria a relevância da medida.
A comissão mista optou pelo encaminhamento da matéria na forma de projeto de lei de conversão por entender que essa é a melhor alternativa para organizar as emendas acolhidas e para conferir ao texto a estrutura recomendada pela técnica legislativa. As 61 emendas aprovadas visam, de acordo com o relatório da proposição, afastar possíveis vícios de inconstitucionalidade e ilegalidade e mitigar o risco de questionamentos.
Os principais aspectos da nova proposição:
- São previstas três modalidades de transação com os seguintes objetos: (a) créditos de natureza tributária ou não, inscritos em dívida ativa da União; (b) créditos tributários em contencioso judicial ou administrativo, envolvendo disseminada e relevante controvérsia jurídica; e (c) créditos tributários em contencioso administrativo de baixo valor.
- Na primeira modalidade, a transação poderá ser proposta pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) ou pelo devedor, em caráter individual ou por adesão com base em edital. A proposta poderá versar sobre: (i) concessão de descontos nas multas, juros de mora e encargos relativos a créditos classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação; (ii) prazo ou forma de pagamento, inclusive diferimento e moratória; e (iii) oferecimento, substituição ou alienação de garantias ou de constrições.
- Para empresas em geral, o montante principal do crédito tributário não admite redução. É ainda vedada uma redução maior do que 50% do valor total dos créditos transacionados. O pagamento da dívida deve ocorrer em até 84 meses. Já para pessoas naturais, empresas de pequeno porte e microempresas, também não se admite a redução do crédito principal, mas a redução do valor total pode chegar a 70% e contar com prazo de pagamento de até 100 meses.
- No projeto de lei, reduziu-se a discricionariedade das autoridades fazendárias na qualificação do que deve ser considerado crédito irrecuperável ou de difícil de recuperação: essa atribuição deixa de pertencer exclusivamente à autoridade fazendária, devendo haver ato da PGFN para fixar os critérios objetivos dessa classificação.
- A proposta de transação não suspenderá a exigibilidade de créditos tributários ou andamento das respectivas execuções fiscais, o que não impede o sobrestamento do processo por convenção das partes, até a extinção dos créditos.
- Na segunda modalidade, a proposta de transação é feita pelo poder público, com vistas ao encerramento de litígios aduaneiros e tributários decorrentes de “relevante e disseminada controvérsia jurídica”. O sujeito passivo deve aderir às condições e aos requisitos estabelecidos em edital. Nessa hipótese, não há previsão de transação em caráter individual.
- Considera-se relevante e disseminada a controvérsia jurídica que envolva um número considerável de contribuintes, ultrapassando os interesses subjetivos da causa.
- As reduções e concessões nessa hipótese também estão limitadas ao desconto de 50% do crédito, com prazo máximo de 84 meses para pagamento.
- O contribuinte que aderir à transação ficará sujeito, em relação a fatos geradores futuros e não consumados, ao entendimento dado pela administração tributária à questão em litígio, ressalvada a cessação de eficácia prospectiva da transação decorrente de precedentes vinculantes (decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade, súmulas vinculantes, acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e recursos repetitivos) ou referente a tema que seja objeto de parecer, vigente e aprovado pela PGFN, que conclua em sentido diverso, e nas demais hipóteses de dispensa da PGFN para contestar e recorrer, previstas no art. 19 da Lei nº 10.522/02.
- Ainda na segunda modalidade: (i) a adesão deverá abranger todos os litígios relacionados à tese objeto da transação existentes na data do pedido, ainda não definitivamente julgados; (ii) a solicitação de adesão suspende a tramitação dos processos administrativos enquanto perdurar a sua apreciação; e (iii) não se admitirá adesão que não implique extinção do litígio administrativo ou judicial, ressalvada a hipótese em que for possível segregar o objeto da discussão, nos termos de edital a ser publicado pelo poder público.
- Merece especial atenção o alcance da renúncia que essa modalidade de transação por adesão deverá acarretar na prática, já que a norma impõe ao contribuinte a renúncia à discussão em todos os processos que envolvam a mesma tese jurídica, de acordo com os critérios que serão definidos no edital. Em princípio, não seria possível selecionar casos específicos para renúncia, o que pode inviabilizar a transação.
- Já na terceira modalidade, a transação recai exclusivamente sobre crédito tributário em discussão administrativa cujo valor não ultrapasse 60 salários mínimos e que tenha como sujeito passivo pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte. A concessão de descontos não poderá superar o limite máximo de 50% do valor total do crédito, autorizada nessa hipótese a redução do valor do principal.
Em todas as modalidades:
- Apesar de expressamente vedar a transação de créditos por devedores contumazes, a proposição não define o que deve ser entendido como “devedor contumaz”, atribuindo essa tarefa para outra lei específica.
Atualmente, a possível previsão legal mais próxima que se tem é a do Projeto de Lei nº 1.646/19, em trâmite na Câmara e de acordo com o qual o devedor contumaz seria “o contribuinte cujo comportamento fiscal se caracteriza pela inadimplência substancial e reiterada de tributos”. Tal inadimplência corresponderia à existência de débitos em nome do devedor ou das pessoas físicas ou jurídicas a ele relacionadas, inscritas ou não em dívida ativa da União, de valor igual ou superior a R$ 15 milhões, em situação irregular por período igual ou superior a um ano.
- É vedada a transação que reduza multas penais e que conceda descontos a créditos relativos ao regime do Simples Nacional, enquanto não editada lei complementar autorizativa, e ao FGTS, enquanto não autorizado pelo seu Conselho Curador.
- A proposta de transação está condicionada à desistência das discussões administrativas e judiciais relativas ao objeto da transação e à renúncia a quaisquer alegações de direito em que se fundem tais demandas, inclusive as ações judiciais de natureza coletiva. No caso dos processos judiciais, a renúncia deverá ser objeto de requerimento de extinção do feito com resolução de mérito, por meio da homologação da transação, nos termos da alínea “c” do inciso II do art. 487 do Código de Processo Civil.
- A Fazenda Nacional não está autorizada a ajuizar ação de falência em caso de rescisão da transação, mas pode solicitar que o processo de recuperação judicial seja convolado em falência nessa hipótese.
- A inobservância das condições estabelecidas na transação acarretará a sua rescisão nas hipóteses em que dispõe a lei. O devedor será notificado desse ato e poderá impugná-lo no prazo de 30 dias. Nesse prazo é também admitida a regularização de vício sanável ensejador de rescisão.
Em relação aos pontos de atenção identificados no texto da MP, o projeto de lei de conversão trata de relevantíssima questão, referente aos termos da renúncia a ser requerida pelo devedor nos processos judiciais.
De acordo com a nova redação proposta, o requerimento de renúncia a ser formulado ao juízo terá por finalidade encerrar o processo com resolução do mérito para homologação da transação. Também terá o efeito de formar título executivo judicial. Tratando-se, portanto, de típica transação, com concessões mútuas de parte a parte para o encerramento do litígio, não deveria haver, em nossa opinião, condenação em ônus sucumbenciais.
Sob esse aspecto, também é incoerente, a nosso ver, a previsão de mera redução dos encargos legais incidentes quando da inscrição do crédito em dívida ativa da União. Por assumirem a natureza de honorários advocatícios, tais valores também deveriam ser excluídos do montante final a ser pago em caso de transação.
De outro lado, o projeto de lei de conversão deixou de abordar a situação da dívida tributária ainda não inscrita, mas cujo processo administrativo já tenha se encerrado. Esse crédito, a princípio, não estaria previsto em nenhuma das modalidades de transação, até que seja objeto de ação judicial, na forma do art. 19 do projeto de lei.
Se o objetivo da medida é reduzir a litigiosidade, tão importante quanto encerrar processos em curso é evitar a sua instauração. Assim, seria de rigor que créditos já constituídos ainda não inscritos em dívida ativa também pudessem ser objeto de transação.
Por sua vez, a proposição acertadamente parece ter solucionado a situação do crédito tributário ainda não constituído pelas autoridades fiscais, ao dispor que a segunda modalidade de transação deve ter como referência uma tese controvertida, estando apenas condicionada, a princípio, à existência, na data de publicação do edital, de discussão judicial ou administrativa ativa pendente de julgamento definitivo, relativamente à tese objeto da transação.
Não se exige, portanto, a existência de uma contingência passiva materializada para transacionar sobre determinada tese jurídica, o que permite a incidência da norma em mandados de segurança e ações declaratórias cujo objeto seja a discussão da obrigação tributária, por exemplo.
Assim, mantém-se a crítica à suposta falta de previsão para transações com créditos no ínterim entre sua constituição definitiva em esfera administrativa e a inscrição em dívida ativa. Merece elogio, contudo, a extensão da medida para as discussões judiciais envolvendo obrigação tributária ainda não constituída.
Quanto ao contencioso administrativo de pequeno valor (débitos que não superem 60 salários mínimos cujo sujeito passivo seja pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte), o projeto de lei, em contrapartida às condições mais favoráveis à transação, traz uma limitação relevante ao direito do contribuinte de recorrer ao Carf que certamente será alvo de questionamento. A previsão é de que o julgamento de tais processos seja realizado em última instância por órgão colegiado da Delegacia da Receita Federal de Julgamento, observando-se a vinculação a entendimentos do Carf.
Isso significa que tais contribuintes não teriam acesso a um julgamento paritário em última instância administrativa, já que todos os julgadores das delegacias de julgamento são auditores fiscais da Receita Federal. Além disso, as sessões da delegacia não são divulgadas atualmente aos sujeitos passivos, que apenas são intimados do resultado do julgamento, sem a possibilidade de acompanhá-lo pessoalmente, agendar audiências com julgadores ou realizar sustentação oral.
A nosso ver, caso a proposta seja aprovada, a regulamentação a ser editada pela Receita deverá alterar o funcionamento das delegacias para que o órgão possa funcionar como última instância julgadora, com plena garantia ao contraditório e à ampla defesa dos contribuintes e à própria legalidade da constituição definitiva do crédito tributário, mediante estruturação paritária dos órgãos de julgamento (julgadores designados pela RFB e pelos contribuintes).
Apresentadas as linhas gerais do projeto de lei de conversão da MP do Contribuinte Legal, é grande a expectativa em torno da promulgação da lei e de sua regulamentação.
O projeto seguiu para votação no Plenário da Câmara dos Deputados. O limite para aprovação pelas duas Casas legislativas é 25 de março de 2020.