Uma das primeiras medidas adotadas pelo novo governo, em janeiro deste ano, foi a edição da Medida Provisória 1.160/23, que reinstituiu o voto de qualidade como critério de desempate nos julgamentos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). A MP revogou a norma contida no art. 19-E da Lei 10.522/02, que previa uma decisão favorável ao contribuinte em caso de empate no julgamento.
A MP 1.160/23 também aumentou o limite de alçada para a interposição de recurso voluntário no Carf, de 60 para 1.000 salários-mínimos. Dessa forma, a controvérsia que não superasse esse valor seria julgada em única e última instância pela Delegacia Regional de Julgamento (DRJ), sem a possibilidade de levar a discussão para a segunda instância do contencioso administrativo fiscal, o Carf.
Apesar de produzir efeitos jurídicos imediatos, a MP 1.160/23 encontrou bastante resistência, tanto no Congresso Nacional quanto na sociedade em geral, durante seu processo de conversão em lei. O prazo de vigência da medida provisória – 60 dias, prorrogáveis por mais 60 dias – se encerra em 1º de junho deste ano. Até o momento, o texto não foi levado à votação, o que indica que a norma não será convertida em lei e deixará de produzir efeitos.
Apresentação do PL 2.384/23 pelo governo federal
Nesse contexto, o governo apresentou na Câmara dos Deputados, no dia 5 de maio, o Projeto de Lei 2.384/23 (PL 2.384/23). Assim como a MP 1.160/23, o projeto propõe o retorno do voto de qualidade como critério de desempate em julgamentos no Carf. Ou seja, mais uma tentativa de retomar o cenário de solução dos litígios com prevalência do voto do presidente da turma.
O PL 2.384/23 contém seis artigos. O art. 1º disciplina a proclamação de resultado de julgamento na hipótese de empate, nos mesmos termos que constavam na MP 1.160/23 e com referência à norma contida no §9º do art. 25 do Decreto 70.235/72.[1] O art. 5º, alinhado ao primeiro artigo, revoga expressamente a regra do art. 19-E da Lei 10.522/02 (desempate favorável ao contribuinte).
Os demais dispositivos tratam de outros temas:
- o art. 2º propõe que a Receita Federal disponibilize métodos de autorregularização de obrigações principais e acessórias;
- o art. 3º prevê que a Receita Federal classifique os contribuintes por grau de conformidade tributária, com base em critérios como a regularidade cadastral; regularidade no recolhimento de tributos devidos; exatidão de informações prestadas nas declarações e escriturações, entre outros;
- o art. 4º traz a previsão, também já contida na MP 1.160/23, de aumento do limite de alçada para interposição de recurso voluntário no Carf de 60 para 1.000 salários-mínimos.
Essa última medida, embora tenda a diminuir o estoque de processos no Carf, limita o acesso – especialmente de contribuintes pessoas físicas e daqueles contribuintes com dívidas tributárias menores – à segunda instância do contencioso administrativo fiscal, única na qual o julgamento é realizado em composição paritária, o que permite maior debate sobre os temas.
Em regra, a tramitação de um projeto de lei é mais demorada do que a das medidas provisórias, que têm rito especial e mais célere, condicionado aos requisitos de relevância e urgência. Ele passa por comissões temáticas, em que a matéria é debatida pelos parlamentares e pode haver maior reflexão sobre o tema.
Assim, diante da caducidade próxima da MP 1.160/23 e do trâmite sabidamente mais demorado do projeto de lei, o governo apresentou à Câmara dos Deputados, com base no art. 64, §1º, da Constituição Federal, solicitação para o PL 2.384/23 tramitar em regime de urgência, que dispensa algumas formalidades regimentais.
A Câmara dos Deputados tem 45 dias para apreciar a solicitação de urgência. Após esse prazo, todas as demais deliberações legislativas da Câmara serão travadas, com exceção das que tenham prazo constitucional determinado, até que se conclua a votação. A Câmara dos Deputados tem até o dia 20 de junho para se manifestar sobre a solicitação de urgência para o PL 2.384/23, sob risco de travar a pauta a partir do dia seguinte.
Vale lembrar que, a partir do dia 18 de julho, dá-se início ao recesso parlamentar, com duração até o dia 31 de julho, conforme dispõe o art. 57, da Constituição Federal.
O fato é que, a partir de 1º de junho, a norma prevista na MP 1.160/23 perde validade, voltando a vigorar a regra anterior, disposta no art. 19-E da Lei 10.522/02, que, como mencionado, em caso de empate na votação no Carf, prevê decisão final favorável ao contribuinte.
Tramitação das ADIs 6.399, 6.403 e 6.415 no STF
Vale lembrar que, no Supremo Tribunal Federal (STF), tramitam as ações diretas de inconstitucionalidade (“ADIs”) 6.399, 6.403 e 6.415, que questionam a constitucionalidade formal e material do art. 19-E da Lei 10.522/02.
O julgamento das ADIs teve início em plenário no dia 24 de março de 2022, com placar parcial de seis votos pela constitucionalidade do dispositivo legal questionado. O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do ministro Nunes Marques.
No último dia 16 de maio, o ministro liberou as ações para julgamento, e elas podem ser pautadas a qualquer momento. Caso o julgamento das ADIs ocorra antes da aprovação do PL 2.384/23, seu resultado definirá se a regra do desempate a favor dos contribuintes no Carf continuará sendo aplicada.
Se o PL 2.384/23 for aprovado antes do julgamento das ações, a regra de desempate aplicável nos julgamentos do Carf será aquela prevista no projeto de lei, já que ele revoga o art. 19-E da Lei 10.522/02.
Se a MP 1.160/23 caducar sem ser convertida
O que acontece com os processos que foram julgados pelo Carf com aplicação do voto de qualidade durante o período em que as disposições da medida provisória estavam vigentes?
Nesses casos, o Congresso Nacional tem a prerrogativa de editar, em até 60 dias, decreto legislativo para disciplinar os efeitos jurídicos gerados durante a vigência da medida provisória.
Se esse decreto não for editado, o art. 62, §11º, da Constituição Federal prevê que as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência continuarão regidos pelo que foi estabelecido na medida provisória.
Assim, durante os poucos meses de vigência da MP 1.160/23, os processos que foram julgados pelo Carf com aplicação do voto de qualidade, a princípio, terão seus resultados mantidos – ainda que existam outros argumentos para discutir judicialmente a validade da medida provisória.
A regulamentação pelo Congresso é, portanto, extremamente necessária para evitar que se perpetue situação absolutamente anti-isonômica no tratamento dos contribuintes que tiveram seus recursos incluídos na pauta de julgamento do Carf durante o prazo de vigência da medida provisória e dos que não tiveram processos incluídos em pauta nesse período. O empate de votos geraria resoluções exatamente opostas.
E sobre o PL 2.384/23, o que se espera?
O rito de tramitação de urgência indica que, até o fim do primeiro semestre, é possível haver um posicionamento do Congresso sobre essa investida do governo. Quem sabe isso permita um pouco de estabilidade no ambiente de julgamento administrativo.
Na disputa pela definição do critério de desempate aplicável nos julgamentos do Carf, o governo entrou em uma “queda de braço” com os contribuintes, na contramão dos movimentos mais recentes que sugerem mais diálogo e aproximação entre fisco e contribuinte, por meio de projetos de autorregularização e conformidade tributária.
Para além do critério de desempate no Carf, porém, há muito o que ser repensado na estrutura do contencioso administrativo fiscal. Mas isso são cenas de um próximo capítulo, ou melhor, do próximo artigo.
[1] Art. 25. O julgamento do processo de exigência de tributos ou contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal compete:
- 9º Os cargos de presidente das turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, terão o voto de qualidade, e os cargos de vice-presidente, por representantes dos contribuintes. (Incluído pela Lei 11.941/09)