O artigo 1º, §1º, da Lei 9.873/99, estabelece que há incidência de prescrição intercorrente “no processo administrativo, paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho”. No âmbito do direito tributário, a ocorrência de prescrição é uma das hipóteses de extinção do crédito tributário, conforme o artigo 156, inciso V, do Código Tributário Nacional (CTN).
A aplicabilidade desse dispositivo a créditos fiscais, porém, é matéria bastante controvertida. De acordo com a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a matéria, não há prescrição intercorrente no curso do processo administrativo tributário.
A Receita Federal do Brasil (RFB), por sua vez, tenta estender esse raciocínio para os créditos decorrentes de penalidades previstas na legislação aduaneira, ou seja, créditos aduaneiros.
Para o órgão, não cabe falar em prescrição intercorrente para os processos administrativos de cobrança de penalidades aduaneiras, ainda que sem movimentação pelo prazo superior a três anos. O argumento central dessa tese é que as penalidades aduaneiras têm função de auxiliar na arrecadação do Imposto de Importação (II) e Imposto de Exportação (IE). Por esse motivo, deveriam seguir o mesmo tratamento dado à cobrança de créditos tributários na esfera administrativa.
Esse entendimento da RFB tem prevalecido no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), inclusive com apoio da Súmula 11 aprovada pelo pleno em 2006[1] que dispõe que a prescrição intercorrente não se aplica no processo administrativo fiscal:
Súmula CARF nº 11
Aprovada pelo Pleno em 2006
Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal. (Vinculante, conforme , de 07/06/2018, DOU de 08/06/2018).
- Acórdão 103-21113, de 05/12/2002;
- Acórdão 104-19410, de 12/06/2003;
- Acórdão 104-19980, de 13/05/2004;
- Acórdão 105-15025, de 13/04/2005;
- Acórdão 107-07733, de 11/08/2004;
- Acórdão 202-07929, de 22/08/1995;
- Acórdão 203-02815, de 23/10/1996;
- Acórdão 203-04404, de 11/05/1998;
- Acórdão 201-73615, de 24/02/2000; e
- Acórdão 201-76985, de 11/06/2003.
Ainda que os precedentes que deram origem à Súmula 11 tratem de matéria exclusivamente tributária, a Súmula nº 11 é aplicada de forma rotineira e reiterada em casos que tratam de matéria aduaneira. Isso pode sugerir uma suposta equivalência entre o crédito tributário e o crédito aduaneiro no âmbito da Administração Pública federal.
Veja-se, por exemplo, o recente acórdão 3402-010.219, de 21 de março de 2023:
“ASSUNTO: OBRIGAÇÕES ACESSÓRIAS Ano-calendário: 2008
(...)
PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. É incabível a argumentação de prescrição intercorrente no Processo Administrativo Fiscal, sendo o assunto já enfrentado por Súmula CARF nº 11.
(...)
6. Prescrição Intercorrente
A súmula CARF nº 11 afasta a aplicabilidade da prescrição intercorrente no Processo Administrativo Fiscal.
‘Súmula CARF nº 11 Aprovada pelo Pleno em 2006 Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal. (Vinculante, conforme Portaria MF nº 277, de 07/06/2018, DOU de 08/06/2018). Acórdãos Precedentes: Acórdão nº 103-21113, de 05/12/2002 Acórdão nº 104-19410, de 12/06/2003 Acórdão nº 104- 19980, de 13/05/2004 Acórdão nº 105-15025, de 13/04/2005 Acórdão nº 107-07733, de 11/08/2004 Acórdão nº 202-07929, de 22/08/1995 Acórdão nº 203-02815, de 23/10/1996 Acórdão nº 203-04404, de 11/05/1998 Acórdão nº 201-73615, de 24/02/2000 Acórdão nº 201-76985, de 11/06/2003’.
Sem razão à Recorrente.”
Apesar de o direito aduaneiro e o direito tributário serem profundamente interligados, eles não se confundem, pois estão amparados em regimes normativos diferentes.
O próprio Ministério da Economia já fez essa divisão na Portaria ME 260/20 – e nos acórdãos dela decorrentes. Na portaria, estabeleceu-se que o artigo 19-E da Lei 10.522/02 (que determina o voto de qualidade em favor do contribuinte e foi inserido pela Lei 13.988/20) somente seria aplicável a créditos de natureza tributária, sendo vedada sua aplicação em créditos de matéria aduaneira.
O posicionamento apresentado recentemente no Recurso Especial 1.999.532/RJ (REsp 1.999.532/RJ) reacende os debates e dá força ao entendimento sustentado pelos contribuintes – que, até o momento, é rechaçado pelo Carf.
Em 9 de maio deste ano, ao julgar o recurso especial mencionado, a Primeira Turma do STJ, por unanimidade, reconheceu a natureza administrativa da multa aplicada por atraso no registro de informações pelo transportador no Sistema Integrado de Comércio Exterior (Siscomex). Com isso, o prazo prescricional de três anos, estabelecido na Lei 9.873/99, passou a ser aplicável a esses casos.
A situação que se discutia nos autos era a natureza da multa aduaneira pelo atraso na prestação de informações de carga embarcada no Siscomex, prevista no artigo 107, inciso IV, alínea ‘e’, do Decreto-Lei 37/96, para, justamente, determinar se haveria ocorrência de prescrição intercorrente.
No entender dos ministros, o cumprimento das obrigações aduaneiras tem como objetivo “verificar o atendimento às normas relativas ao comércio exterior”. Qualquer ganho na apuração e verificação do cumprimento de obrigações fiscais seria um mero benefício indireto da obrigação. A natureza das obrigações aduaneiras, portanto, é inequivocamente administrativa, e não tributária.
Diante de tal conclusão, no caso concreto, os ministros decidiram pela aplicabilidade do instituto da prescrição intercorrente por compreenderem que “as multas em questão possuem caráter estritamente administrativo, porquanto decorrentes de violação de regra sem pertinência direta com a fiscalização e a arrecadação do Imposto de Exportação” (grifos do original).
Apesar de ser um precedente de apenas uma das turmas do STJ e não ter caráter vinculante, trata-se, sem dúvida, de decisão extremamente importante. Esse entendimento reabre o caminho para que contribuintes possam levantar discussões sobre a distinção no tratamento dispensado pela Administração Pública em matéria tributária e aduaneira.
Cabe ao contribuinte, além de repensar a estratégia nesse novo cenário jurisprudencial, acompanhar o desenvolvimento dessa nova fase de debates. O REsp 1.999.532/RJ pode ser o ponto de virada na discussão sobre a classificação e tratamento de créditos tributários e aduaneiros no Carf.
[1] Nos termos da Portaria do Ministério da Fazenda 277/18, a Súmula 11 passou a ter efeitos vinculantes na Administração Pública federal.