Em vigor desde 2 de maio de 2022, a Resolução 80/22 da Comissão de Valores Mobiliários – CVM (Resolução CVM 80/22) consolida e atualiza as principais normas reguladoras do mercado de capitais sobre o registro e a prestação de informações por emissores de valores mobiliários admitidos a negociação em mercados regulados pela autarquia.
Uma das principais novidades trazidas pela Resolução CVM 80/22 é a obrigação de comunicar demandas societárias. Essa exigência está prevista no inciso XLIII do artigo 33 da norma, que elenca as informações eventuais a serem prestadas por companhias registradas na categoria “A” (emissores autorizados a negociar quaisquer valores mobiliários em mercados regulamentados). Isso inclui processos arbitrais sigilosos, na forma disciplinada pelo Anexo I da mesma Resolução CVM 80/22.
Mesmo antes de aprovada, a nova norma já vinha gerando muito debate na comunidade jurídica em razão dos seus possíveis impactos sobre a confidencialidade dos processos arbitrais, considerada uma das maiores vantagens da arbitragem pelos seus usuários.
Se por um lado as companhias abertas têm a sua atuação pautada pela transparência e o dever de informar – garantindo a divulgação ampla, adequada e tempestiva de informações relevantes aos seus investidores –, por outro, a confidencialidade permite proteger informações sensíveis e tem sido aplicada praticamente de forma automática nas arbitragens societárias que envolvem essas companhias abertas.
O tema da compatibilização da confidencialidade dos processos arbitrais com o dever de informar ganha especial relevância no Brasil, que é uma das poucas jurisdições em que a arbitragem se tornou o método prevalente para resolução de disputas societárias de companhias abertas. A arbitragem é obrigatória para as empresas listadas nos segmentos especiais de listagem da B3.
Contexto da edição da Resolução CVM 80/22
A antiga Instrução 480/09 da CVM (ICVM 480/09) já previa, em seu Anexo 24, que as companhias registradas na categoria “A” deveriam reportar, por meio dos formulários de referência, a existência de informações relevantes para investidores sobre processos judiciais, administrativos ou arbitrais que não estivessem sob sigilo e de que o emissor ou suas controladas fossem parte (nos termos do item 4.3 e seguintes).
Com relação aos processos sigilosos, o item 4.5 do mesmo Anexo 24 previa que o emissor deveria apenas “analisar o impacto em caso de perda e informar os valores envolvidos” (destaque nosso).
Posteriormente, a Instrução 590/17 da CVM (ICVM 590/17) também introduziu no rol exemplificativo de fatos relevantes sujeitos à divulgação a instauração de arbitragens que pudessem afetar a situação econômico-financeira da companhia (artigo 2º, parágrafo único, inciso XXII da atual Resolução CVM 44/21).
Com a intenção de ampliar o escopo de divulgação, em fevereiro de 2021, a CVM apresentou proposta de alteração da ICVM 480/09 ao mercado, por meio da qual pretendia dar maior visibilidade sobre demandas envolvendo o emissor (direta e indiretamente) e seus investidores.
A proposta, que foi objeto de amplo debate na audiência pública (ver artigo sobre a Audiência Pública 01/21 da Superintendência de Desenvolvimento de Mercado – SDM da CVM), culminou na aprovação da Resolução CVM 80/22, que:
- determina a comunicação de demandas societárias pelas companhias registradas na categoria “A” e estrangeiras;
- define o conceito de demandas societárias sujeitas a comunicação (ver artigo que aborda o conceito de demandas societárias); e
- apresenta diretrizes para essas comunicações, elencando as informações sobre demandas societárias que devem ser reportadas e o prazo.
Em 13 de maio de 2022, com a entrada em vigor da Resolução CVM 80/22, a Superintendência de Relações com Empresas da CVM também divulgou o Ofício Circular 3/2022-CVM/SEP, informando as companhias abertas e estrangeiras sobre a obrigação de comunicar demandas societárias que se enquadrem no disposto Anexo I da Resolução CVM 80.
Essas comunicações devem ser encaminhadas por meio do Sistema Empresas.NET da CVM, com a utilização da categoria “Comunicação sobre Demandas Societárias”.
Novas diretrizes sobre comunicação de processos arbitrais
A Resolução CVM 80/22 manteve, em seu Anexo C, as orientações que estavam previstas na antiga ICVM 480/09 sobre a comunicação de processos judiciais, administrativos ou arbitrais em que o emissor ou suas controladas sejam parte, por meio do formulário de referência. No entanto, no Anexo I, também estabeleceu novas obrigações de comunicação de informações mais detalhadas, direcionadas especialmente aos processos arbitrais.
Em relação à relativização da confidencialidade de procedimentos arbitrais, chama atenção, em particular, o conteúdo do artigo 1º, §2º, do Anexo I: o dispositivo prevê que a confidencialidade imposta por convenções arbitrais e/ou regulamentos das instituições arbitrais não exime as companhias de divulgar todas as informações estabelecidas pela Resolução CVM 80/22.
Com essa medida, afasta-se qualquer dúvida de que, mesmo quando se opta expressamente pela confidencialidade da arbitragem – por meio de previsão em convenção de arbitragem ou pela escolha de regulamento que estabeleça a confidencialidade como regra – o dever de comunicar todos os fatos que se enquadrem na Resolução CVM 80/22 se mantém. O dispositivo resguarda apenas, em sua parte final, “os limites de sigilo decorrente de lei”.
Já por meio do artigo 2º do Anexo I, a CVM buscou especificar quais são as informações básicas que devem ser fornecidas sobre a instauração de processo arbitral e seus desdobramentos.
Assim, feita a notícia de instauração do procedimento arbitral, as companhias devem, no prazo de sete dias úteis a contar da apresentação do requerimento de arbitragem ou do seu recebimento, comunicar:
- as partes envolvidas;
- os valores, bens ou direitos envolvidos;
- os principais fatos da disputa; e
- os pedidos veiculados.
Quanto aos desdobramentos no curso da demanda, também devem ser objeto de comunicação, sempre no prazo de sete dias úteis a contar de seu conhecimento pela parte:
- a apresentação de resposta ao requerimento de arbitragem;
- a celebração do termo de arbitragem ou documento equivalente que indique a estabilização da demanda;
- a prolação de decisões sobre medidas cautelares, jurisdição dos árbitros, inclusão ou exclusão de partes; e
- a prolação de sentenças arbitrais parciais ou finais.
Por fim, deve ser comunicada a eventual celebração de acordo no curso da demanda – também no prazo de sete dias úteis a contar da apresentação (presumivelmente, aos árbitros) da sua celebração –, com indicação de valores, das partes envolvidas e “outros aspectos que possam ser do interesse da coletividade dos acionistas” (inciso IV do artigo 2º).
Vale observar, contudo, que a redação do caput do artigo 2º – “[o] emissor deve divulgar ao mercado as principais informações relativas à demanda, incluindo: [...]” (destacou-se) – sugere que essas são as informações mínimas a serem divulgadas.
Fica a critério dos diretores de relação com os investidores/representantes legais avaliar a necessidade de divulgação de informações adicionais sobre as demandas arbitrais societárias, além daquelas expressamente elencadas no artigo 2º.
Quanto à compatibilização das novas regras de comunicação de demandas societárias com as normas existentes que regulamentam a divulgação de informações sobre ato ou fato relevante, a Resolução CVM 80/22 reconhece que, caso a existência de demandas societárias ou desdobramentos dessas demandas configure fato relevante, é facultado à companhia divulgar apenas o aviso de fato relevante, desde que contenha todas as informações exigidas pela Resolução CVM 80/22 (§4º do artigo 1º do Anexo I).
Merece destaque, ainda, a previsão do parágrafo único do artigo 2º, que dispensa a apresentação do inteiro teor dos documentos citados no Anexo I.
A proposta submetida originalmente pela CVM para discussão em audiência pública deixava dúvidas sobre a necessidade de divulgar a íntegra dos documentos e das peças processuais relevantes – o que possivelmente excederia o necessário para que os investidores possam tomar decisões embasadas.
As novas regras são obrigatórias em relação às demandas societárias iniciadas após a entrada em vigor da Resolução CVM 80/22 e facultativa para aquelas iniciadas anteriormente.
Espera-se que, na vigência das novas obrigações de comunicação de demandas societárias, os objetivos da CVM sejam atendidos – ou seja, que os investidores das companhias sujeitas a essas regras passem a ter acesso, de forma adequada e tempestiva, às informações sobre demandas societárias que possam influenciar as suas decisões.
Quanto aos impactos das novas orientações da CVM sobre a escolha da arbitragem como meio para a solução de disputas societárias, acreditamos que a Resolução CVM 80/22, na forma como foi aprovada, não será um grande desincentivo à arbitragem. Será preciso, no entanto, acompanhar com atenção qual será a interpretação dada pela CVM em casos de eventuais dúvidas/divergências sobre a interpretação das novas obrigações de divulgação.